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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

AS PUPILAS DO SR. REITOR - Por Júlio Diniz


AS PUPILAS DO SR. REITOR
Por Júlio Diniz
                  José das Dornas era um lavrador abastado, viúvo e com dois filhos. Possuía boas e um gênio afável e jovial. Gozava de geral consideração e simpatia na sua aldeia. 
                   Dos seus dois filhos Pedro e Daniel, o primeiro era o retrato do pai; robusto, feito para trabalhos do campo, simples e são de corpo e alma; o segundo, mais novo que ele uns sete anos, apresentava uma compleição débil e pela delicadeza das feições, tom de pele e fraqueza de gênio, mais parecia uma rapariga. 
                   Vendo o pai que Daniel, pela sua constituição e saúde, não poderia, sem perigo, dedicar-se como o irmão aos rudes trabalhos do campo, resolveu-se, depois de se aconselhar com o reitor, a fazer dele um padre. 
                    Para esse efeito, ofereceu-se o reitor a dar-lhe lições de latim. 
                    Tinha o rapaz treze anos apenas, mas mostrara grande facilidade e inteligência para os estudos e andavam portanto José Dornas e o reitor muito satisfeitos, quando este último fez uma descoberta que o convenceu de que Daniel não tinha vocação para o sacerdócio. 
                    Foi o caso que, desconfiado de que o rapaz levava muito tempo no caminho de sua casa para a casa do pai no fim das lições, uma tarde o seguiu e foi dar com ele na companhia de uma pequena guardadora de gado chamada Margarida. Escondeu-se o bom cura e viu e ouviu tudo que se passava. Daniel dava lições de leitura à sua amiga, cantavam e conversavam, fazia projetos de casarem um dia. O reitor ouviu Daniel assegurar à sua amiga que nunca seria padre e que bem enganados andavam o pai e o seu mestre cuidando que ele seguiria tal carreira. 
                  O resultado desta descoberta  do reitor foi a resolução do José das Dornas de mandar o filho para a cidade do porto estudar, desistindo de o fazer padre, e dando-lhe qualquer outra carreira à escolha. 
                  Margarida, a pequena guardadora de gado, ficou desolada com a partida do seu único amigo. 
                  Perdera a mãe muito cedo e o pai casara pela segunda vez e dessas núpcias tivera uma outra  filha, Clara. A mãe de Clara tratava mal a pobre Margarida, fazendo-lhe sentir a sua triste posição naquela casa que não era sua. Efetivamente o pai de margarida era pobre e a sua segunda mulher, rica. Casa, campos, gado, tudo lhe pertencia. Margarida regava com lágrimas o pão que comia. 
                   Assim foi a pobre criança crescendo, cheia de trabalhos e amarguras, que aumentaram com a morte do pai, tendo porém a consolação da grande amizade de Clara que era para ela a melhor das irmãs e a mais afetuosa das amigas, o que Margarida sabia bem reconhecer, como veremos. 
                   Morreu por fim a madrasta de Margarida e à hora da morte arrependeu-se das suas injustiças e crueldades e pediu perdão à enteada. Era porém tarde; Margarida devia ressentir-se toda a vida da sua triste infância. O seu gênio tornara-se melancólico; era calada e pensativa, mas tinha coração de ouro e um juízo e prudência muito superiores á sua idade. Clara, pelo contrario, era uma bela flor do campo, forte, sadia e exuberante de alegria. 
                  Combinaram as duas irmãs que, enquanto Clara se ocupava dos trabalhos das terras empregando assim a sua força e saúde, Margarida dirigia os trabalhos de casa e, não querendo estar às sopas da irmã, organizou uma pequena aula de crianças a quem ensinava. 
                   As duas raparigas tinham como tutor o reitor, que mutoas estimava, tendo lhes ensinado o que sabia e, mais tarde, um velho filósofo que, arruinado, viera da cidade procurar o sossego da sua terra natal p-ara morrer, continuara e desenvolvera as lições do bom padre. Essas lições tinham encontrado excelente terreno, sobretudo na pensativa Margarida que gostava de ler e cujo espírito assim se elevara e se aperfeiçoara. 
                   Estavam as coisa neste ponto, quando Pedro, o filho mais velho de José das Dornas, começou a afeiçoar-se a Clara, o que encheu de júbilo o velho lavrador ao ver,  não só que o filho viria a casar com uma excelente e linda rapariga, como os seus bens assim cresceriam, pois, como já dissemos, Clara tinha bastante de seu. 
                   Entretanto chegou Daniel à aldeia com seu curso terminado. Tornara-se um lindo rapaz, esbelto, de feições delicadas e no seu vestir e maneiras um verdadeiro senhor da cidade. 
                   A sua chegada fez grande impressão na aldeia. Todos queriam ver o "doutor novo", como lhe chamavam. Ente as pessoas que afluíram à casa do José das Dornas a cumprimentar-lhe o filho, encontrava-se o velho médico da terra, o bom João Semana, tipo que o autor tão bem descreve que o seu nome ficou para sempre em Portugal, usando quando se quer designar um perfeito médico de aldeia. 
                  Este João Semana, apesar dos seus oitenta anos, percorria todos os dias aquelas freguesias a cavalo, visitando os seus doentes a quem acudia, não só com socorros clínicos, como com os socorros pecuniários que os seus meios lhe permitiam. 
                  Pouco ou nada versado nos progressos da ciência médica, conservava o seu receituário antigo com o qual, dizia, se dava muito bem. Em resposta a Daniel, que lhe recitava um autor em voga, ou uma descoberta notável ou um medicamento novo, João Semana encolheu os ombros com ceticismo: 
                  - "Tudo isso é muito bonito", disse ele, "mas não serve para nada. Eu penso que lá por fora nessas terras grandes, há fábrica de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também; cá à aldeia não chegam. Você para cá virá. Há de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco; mais gástricas e menos gástricas e disse". 
                   O bom João Semana mostrava-se rabugento com os seus doentes, berrava, acabava por lhes valer sempre e, com os seus conselhos e esmolas escondidas, sempre lhes acudia. 
                   Tinha o velho doutor o costume de contar muitas anedotas, quase sempre a respeito de frades, e assim a cada passo interrompia o que estava dizendo para vir com a sua história. Ora, estava toda aquela aldeia acostumada ao velho João Semana, aos seus modos  bruscos, à sua bondade paternal, à sua pureza de costumes; e Daniel, com seus vinte anos e pouco juízo, só acarretou censura e desconfianças. 
                    Em casa do merceeiro foi para tratar de doença, começou logo a fazer versos à filha do tendeiro, e toda a família, contentíssima, julgou que ele casaria com a moça. Mas quando viram que aquilo não passava de brincadeira, ficaram furiosos e principiaram a falar mal do Daniel que assim criou na aldeia má fama, que por seus disparates e loucuras se foi agravando. Era tal a sua inconsequência e falta de juízo, que, achando bonita o moça por quem seu irmão se afeiçoara, a Clara, não hesitou em lhe mostrar a sua admiração. A rapariga, por seu lado, achava-lhe graça e ia levando, com o seu gênio alegre e descuidado, aquelas atenções de Daniel de brincadeira. 
                  Daniel não era mau, mas sim muito novo e costumado àquela vida de estudante, muito descuidada e imprudente. Incapaz de uma má ação, não tinha, no entanto, força para contrariar os seus gostos e assim se deixava ir, sem pensar, a fazer coisas que a sua consciência de homem de bem, reprovava. 
                  Margarida nunca esquecera aquele tempo da sua infância em que Daniel, um garoto de treze anos, lhe ensinara a ler, cantava e conversava horas com ela, e lhe prometia casamento para quando fossem ambos crescidos. Daniel fora a sua única alegria naquela época tão triste da vida da pobre rapariga e ela guardava-lhe no fundo do seu belo coração tão fiel, um grande reconhecimento e uma grande ternura. Mas, como era orgulhosa e não queria que Daniel nem pessoa alguma pudesse pensar que ela, pobre e humilde, aspirava a tal casamento, a ninguém dizia, nem a Clara, o que tinha no pensamento e tratava de evitar encontrar-se com Daniel; de modo que este, completamente esquecido da sua afeição de criança, mal sabia da existência de Margarida. 
                   A pobre margarida andava muito preocupada com o que se passava entre a irma e Daniel. Não eram ciúmes o que ela sentia; na sua alma grande demais não havia lugar para sentimentos que não fosse grandes e nobres. Afligia-a a imprudência e leviandade da irmã. 
                   Daniel passava todas as tardes a cavalo pela casa das pupilas do senhor reitor e demorava-se a conversar com Clara, que o esperava à janela. É certo que Margarida, costurando pela banda de dentro da janela, junto de Clara, assistia a conversa; masa Daniel não a via e ignorava a sua presença. 
                  Por fim, muito instada pela irmã que lhe apontava os perigos e a aconselhava a ser prudente e a ter juízo, Clara resolveu-se a acabar com tal intimidade e proibiu Daniel de continuar com as suas conversas. 
                  Porém Daniel, que achava graça àquela brincadeira que, na sua leviandade, lhe parecia inocente., não desistiu de bom grado e perseguia Clara procurando falar-lhe. Por fim conseguiu que ela lhe prometesse uma entrevista, de noite, no jardim, para poder explicar-lhe tudo à vontade e ela não ficar fazendo dele uma má ideia.
                   Ora, aconteceu que nessa mesma noite Pedro, o filho mais velho de José das Dornas e noivo de Clara, saiu de casa para poder chegar de madrugada a um campo das suas propriedades, onde queria vigiar uns certos trabalhos que lá fazia. 
                    Ao passar pela casa das duas irmãs, deteve-se um pouco ; quem sabe se Clara estaria acordada?  Pôs-se a cantar em voz alta, mas logo se interrompeu parecendo-lhe ouvir certo ruído por detrás do muro do jardim. 
                    Bateu ao portão perguntando quem estava ali. Mas, como ninguém lhe respondesse, mudou de plano e afastou-se cantando. Depois, voltou para traz cautelosamente e calado e, pondo-se à escuta à porta do jardim, ouviu vozes de duas pessoas que conversavam animadamente. Deu-lhe um salto o coração; passou-lhe pelo pensamento a ideia horrível de que Clara estaria falando a outro homem. 
                    As vozes aproximavam-se da porta. Pedro, sem saber o que fazia e com a cabeça perdida, pôs o dedo no gatilho da espingarda que levava consigo. 
                    A porta abriu-se e apareceram no limiar dous vultos, um de homem e outro de mulher. 
                     - Alto, miserável! Pára ou estás morto!, bradou Pedro. 
                     O homem estacou. Dentro do jardim ouviu-se um grito de mulher e a porta, empurrada com força, vei fechar-se com estrondo. 
                     Pedro avançou para o homem. 
                     - Quem és? Quero conhecer-te antes de te matar!. 
                     E lançando mão ao desconhecido, desembuchou-o; o luar bateu de chapa na cara de Daniel. 
                     Não há palavras que possam explicar o que se passou então na alma do pobre Pedro. 
                     - Daniel!, exclamou ele assombrado. 
                    E ficaram os dois algum tempo calados um defronte do outro. 
                    Daniel, abatido, parecia fulminado. Que desespero e que arrependimento e como ele maldizia agora a sua leviandade. 
                    - Pela alma da nossa mãe, Daniel, disse Pedro por fim, sai daqui se não queres que suceda alguma desgraça! 
                   Daniel ainda queria falar, explicar ao irmão o que se passara, mas o outro gritou-lhe de novo que fugisse; e nisto a mão de um homem pousou no ombro de Daniel. Era o reitor que por acaso ali passava e ouvira e vira o que sucedera. 
                   - Retire-se!, exclamou ele severamente. Eu tinha previsto esta desgraça!
                   Pedro afastara-se. Dirigindo-se para a porta do jardim, tentava arromba-la às coronhadas. 
                   Mal o padre se aproximava, cedeu a porta e Pedro, meio doido, precipitou-se para dentro do jardim. Esbarrou numa mulher que lhe caiu aos pés bradando:    
                   - Pedro, Pedro! Não me queira perder!
                   Era Margarida!
                   Pedro não caia em si de espanto. Era então Margarida e não Clara, que se encontrava no jardim com Daniel! Que alívio sentiu o coração de Pedro! 
                   Quando o reitor chegou, encontrou-os nesta posição. Caminhou com o rosto severo para a mulher, mas recuou também espantado, ao reconhecer Margarida. 
                   De repente o bom homem adivinhou tudo: Margarida, a irmã sublime, a santa rapariga, acabava de se sacrificar para salvar a irmã. 
                   O reitor fingiu acreditar e voltando-se para Pedro, disse-lhe. 
                   - E que mais tens que ver aqui homem? 
                   - Tenho que pedir perdão a todos. 
                   O reitor empurrou-o brandamente para fora, dizendo: 
                   - Vai, vai. Deixa isso para outra vez. 
                   Nisto, como a madrugada rompia ia-se juntando gente, curiosos que o ruído tinha ali chamado. O reitor voltou-se para eles todo zangado. 
                   - E vocês, que fazem ai pasmados? Andar! e ter cautela com a língua. Ouviram? 
                   Os curiosos dispersaram-se, mas a recomendação do bom reitor de nada lhes aproveitou, pois ainda antes do meio dia, já toda a aldeia estava fervendo em notícias disparatadas. Uns diziam que Pedro encontrara o irmão conversando com Clara e que ferira Daniel com um tiro de espingarda; outros asseguravam que se tratava de margarida e não faltava quem pusesse à rasa a santa rapariga; havia quem afirmasse que Pedro matara o irmão, quem tivesse ouvido o tiro e visto o sangue na rua. Assim a fantasia e maldade iam bordando a história e o resultado de tudo isto foi o descrédito de Margarida. As mães já não deixavam as suas filhas frequentarem a aula da pobre rapariga que aceitava tudo com uma resignação infinita, contente no fundo do coração por ter salvo a sua querida Clara. 
                   Mas o reitor é que não entendia as coisas assim. Obrigou a sua pupila preferida a atravessar a aldeia pelo seu braço. Ao chegarem ao largo, muitas discípulas de Margarida que ali andavam brincando, correram para a abraçar; mas as mães sentada pelas portas não as deixaram, chamando-as para junto de si. 
                   Então o reitor, voltando-se para aquelas mulheres, exprobou-lhes a conduta com severidade e para dar o exemplo, mostrar a todos o alto conceito em que tinha a pupila e significar o respeito que ela merecia à sua virtude e seus cabelos brancos, curvou-se diante dela e beijou-lhe a mão, chamando todas as crianças e mandando-as fazer o que ele fizera. 
                   As crianças obedeceram bem alegremente pois adoravam a sua mestra e as mães foram-se chegando a margarida, arrependidas, e abraçaram-na.
                  Nisto chegou José das Dornas que tendo visto o que se passara também, diante de todos, beijou a mão de Margarida dizendo-lhe palavras de sentida amizade e respeito. 
                  Então o reitor disse à pupila que fosse fazer uma visita ao seu velho mestre que estava muito mal e, ficando só com o lavrador, principiaram os dois a conversar sobre o caso. 
                   José das Dornas estava todo ralado com aquela nova loucura do Daniel e falava em mandá-lo para o Brasil, mas o reitor convenceu-o que o melhor seria casa-lo com Margarida. O lavrador, que estimava muito a irmã de Clara, mostrou-se favorável àquela ideia. 
                   Entretanto Margarida, entrando em casa do seu velho  mestre, encontrou-o só e agonizante. 
                   Na sua aflição não sabia o que fazer, quando chegou de repente Daniel; mas o pobre homem  já não tinha cura e pouco depois morria.  Então ali, na presença daquele cadáver, Daniel, tomando o céu como testemunho da sua sinceridade, disse a Margarida que gostava dela, que se lembrava agora dos seus tempos de criança e de quando fugia para ir ter com ela e ensinar-lhe a ler e acabou por lhe pedir que o aceitasse por marido. A pobre Margarida que morria por ele havia tanto tempo, não quis porém aceitar aquele oferecimento que repugnava ao seu orgulho. Receava que, da parte de Daniel, aquilo fosse um simples movimento de generosidade, e receava também que a acusassem de aproveitar a ocasião para apanhar um marido rico, ela que nada tinha na terra. 
                   Porém o reitor,  Clara e Daniel tanto insistiram que ela teve que ceder, sobretudo quando Clara ameaçou de contar a verdade toda, se ela teimasse em recusar. Contar a verdade era perder-se, era fazer a sua desgraça, a de Pedro, a d Daniel. Margarida não teve remédio senão ceder. 
                   Estavam todos reunidos em casa das duas raparigas, o reitor, José das Dornas, Pedro e Daniel, quando chegou o bom João Semana esbaforido porque ouvira os boatos mais extraordinários; que houver sangue, que Pedro andara para matar o irmão, que este fugira, e outras coisas assim. 
                   O reitor mandou-o subir para a sala e ai ficou o velho doutor pasmado, sendo José das Dornas, sentado, limpando uma lágrima de satisfação, a uma janela Clara e Pedro conversando, à outra  Daniel e Margarida. 
                   João Semana olhava para tudo aquilo sem entender nada, até que deu com os olhos no reitor que lhe pregou uma risada. 
                   - isto, que quer dizer? perguntou ele afinal. 
                   - Quer dizer,respondeu o reitor, que estás convidado desde já para duas bodas. 
                   Assim termina a linda e comovedora história das pupilas do senhor reitor, das mais populares que se devem à pena do singelo escritor português. 
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NOTAS EXPLICATIVAS 
Júlio Diniz, na verdade é Gomes Coelho que escrevia sob este pseudônimo.  Ele foi o romancista característico da vida provinciana portuguesa. Ninguém exprimiu melhor o sentimento da paisagem do seu pais, o aspecto insinuante dos seus campos e das suas aldeias. Nas suas expressões pode-se perceber nitidamente sua paixão pela vida interiorana de Portugal. Entre os romances que escreveu, o mais popular, e aquele em que melhor se patenteiam estas qualidades, é o das "Pupilas do Senhor Reitor", aqui resumida de forma pedagógica. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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terça-feira, 24 de setembro de 2013

OTELO, O MOURO DE VENEZA - Por Shakespeare


OTELO, O MOURO DE VENEZA 
 Por Shakespeare 
                 Veneza, ainda que hoje em dia seja apenas uma das mais lindas cidades da Itália, foi antes a capital de uma grande república, que enviava embaixadores às mais poderosas nações do mundo e exercia o seu domínio sobre muitas outras cidades; os seus inúmeros navios levavam o comércio veneziano a longínquos países e os seus soldados e marinheiros conquistavam terras em diversos pontos, onde em breve floresciam brilhantes e prósperas colônias. Naqueles tempos de grandeza e poderio, um mouro do Norte da África,chamado Otelo, homem grande, forte e proporcionado, de pele bronzeada, tornara-se tão célebre pelo seu talento e bravura, que Veneza o fizera general do seu exército. Tinha um espírito elevado e cheio de ilustração, uma rara eloquência, e era tão hábil, que apesar de sua cor escura, e numa época cheia de preconceitos, lhe confiaram o governo da ilha de Chipre que pertencia então à república veneziana. 
                  Teve Otelo a espantosa sorte de prender o coração de uma das mais formosas e ilustres senhoras de Veneza, Desdêmona, filha de Brabancio, senador e membro do governo. Entre tantos pretendentes ricos, poderosos e nobres que aspiravam a sua mão, Desdêmona escolheu Otelo. apesar da sua cor. Mas Desdêmona, que era uma senhora de grande coração e esclarecida inteligência, deixou-se encantar pela nobre alma e brilhante eloquência do destemido guerreiro. A sua maior delícia era escutar durante horas, as emocionantes narrativas da batalhas em que ele tomara parte, dos lances arriscadíssimos em que se encontrara, dos costumes e aspectos das terrar que visitara e das estranhas aventuras que o destino lhe proporcionara na terra e no mar. 
                    Brabancio,  o pai de Desdêmona, ignorava a paixão da filha; e ela ocultava aquele amor no fundo do seu coração porque bem sabia que o pai nunca consentiria no seu casamento com Otelo. 
                    Uma noite foram dois homens acordar Brabãncio e dizer-lhe que Desdêmona fugira para casar com o governador de Chipre.  Um daqueles homens  era Yago, que servia Otelo havia muito tempo na qualidade de oficial e que o odiava desde que o general linha feito de Cássio seu ajudante, preferindo-o a Yago, que esperava ser o escolhido para aquele cobiçado lugar. Yago era astuto, hipócrita, rancoroso e capaz de vilanias; Cássio, pelo contrário, era franco e leal, mas muito confiante e de gênio fraco. 
                    A cólera de Brabancio, ao saber a terrível notícia, foi medonha. Dirigiu-se imediatamente ao doge de Veneza e aos senadores, queixando-se do procedimento de Otelo e pedindo contra ele os maiores castigos, estes,ao princípio, mostraram-se favoráveis ao pai de Desdêmona e prometeram´lhe apoio. Mas Otelo, chamado á presença deles para responder pelo seu ato, fê-lo com tal brilho e nobreza que soube ganhar para a sua causa o doge e os senadores, que mais depressa ainda concederam o perdão, quando Desdêmona, cheia de firmeza, modéstia e dignidade, lhes declarou que amava Otelo com todas as forças do seu coração e tinha orgulho em ser sua esposa. 
                    Naquela mesma noite a dedicação de Otelo pela pátria a qual tão bem servira sempre, foi novamente posta à prova; avisaram-no que a ilha de Chipre, da qual era governador, se encontrava em perigo, ameaçada pelos turcos. 
                    O valente guerreiro partiu logo, deixando a sua esposa confiada aos cuidados do "honrado Yago", pois Otelo continuava a confiar na lealdade  deste homem; e Emília, mulher de Yago, foi chamada para servir de companheira a Desdêmona. Cássio partiu num segundo navio e Desdêmona num terceiro. 
                     Cássio foi o primeiro a chegar  Chipre, tendo perdido de vista o navio de Otelo, durante uma tempestade;  e Yago, que, com sua mulher e Desdêmona, tivera uma viagem mais rápida e feliz, alcançou a ilha antes da chegada do governador. O ódio de Yago e a sua inveja contra Cássio manifestaram-se imediatamente, e o seu cérebro malicioso e astuto principiou a forjar o laço pelo qual tencionava perder o ajudante, a quem Desdêmona tratava com mais confiança e simpatia do que ao hipócrita Yago. 
                   Quando Otelo chegou, pouco depois de Desdêmona, teve a alegria de ser informado de que a esquadra turca fora destroçada pelo mesmo temporal que estivera prestes a afundar o seu seu próprio navio, pois assim, livre dos cuidados de guerra, teria mais tempo para se dedicar à sua adorada Desdêmona. Na noite da sua chegada, ordenou o mouro a Cássio que cuidasse de manter a ordem no castelo e que procurasse evitar por todos os meios qualquer distúrbio entre os soldados. 
                   Entretanto o mesquinho Yago ia urdindo a sua trama. Convidando Cássio para beber com ele, tanto fez e de tal modo se portou que conseguiu embriagá-lo, e, metendo-o depois numa rixa, o infeliz Cássio, completamente ébrio, desafiou e feriu Montana, o governador d Ilha, que Otelo justamente vinha substituir. Chegou este ao lugar da rixa, e, pedindo explicações do que acabava de de se passar, Yago contou-lhe hipocritamente os acontecimentos, fingindo querer desculpar Cássio. Otelo ouviu-o com atenção, e chamando Cássio disse-lhe com tristeza: 
                  - Cássio, continuo a estimar-te, mas desta hora em diante, deixas de ser meu ajudante. 
                  E entregou  Yago a guarda do castelo. Assim teve bom resultado a primeira parte do seu negro plano de traição. Mas faltava o pior.
                  O pobre Cássio recorreu a Desdêmona para que intercedesse por ele junto d seu marido. Fê-lo a boa Desdêmona; mas Yago conseguiu, como um grande tratante que era, fazer pensar a Otelo que, se ela intercedia a favor de Cássio era porque se enamorara dele. Destilara com tanta hipocrisia e cuidado o veneno da dúvida no espírito de Otelo, que por fim o mouro começou a perder a fé imensa que tinha na sua esposa e tornou-se quase doido de ciumes.  O destino favoreceu os perversos planos de Yago. 
                  Antes do casamento, dera Otelo a Desdêmona um lenço muito rico, ao qual atribuía certos podres mágicos; o de tornar a sua dona amada e amável e o de a tornar odiosa se o perdesse. Yago instigou Emília, sua mulher, para que roubasse a Desdêmona este lenço.
                  Um dia, estando Otelo triste e atormentado com aquelas dúvidas que agora lhe não davam descanso,  queixou-se de dores de cabeça. Desdêmona ofereceu-lhe o lenço, mas ela atirou-o ao chão, dizendo que era pequeno demais. Emília apanhou-o prontamente e logo o deu a Yago, que o levou dissimuladamente para a casa de Cássio, onde o deixou cair. Cássio, que não conhecia aquele lenço, pensou que uma sua namorada o tivesse perdido e Yago arranjou as coisas de maneira que ele lhe mostrasse o lenço num certo quarto do castelo onde Otelo se escondera, para verificar se era  o de Desdêmona, e ter assim a prova  de que ela dera a Cássio aquela prenda oferecida pelo marido e que devia ter em tanta estimação. 
                   Convenceu-se então que Desdêmona  já não o amava, e, louco de ciumes e de dor, resolveu-se a matá-la. Entrou de noite no quarto de  Desdêmona, onde a encontrou adormecida no seu leito. Contemplou-a por um momento, e achou-a tão linda que se inclinou e beijou-a. Este beijo despertou-a e, em resposta às perguntas que ela lhe fazia ao vê-lo tão zangado e sem suspeitar a causa do seu desgosto, disse-lhe ele que fizesse as suas orações encomendando a alma a Deus, pois ia morrer, porque ele bem conhecia o seu amor por Cássio. Em vão a infeliz Desdêmona protestou a sua inocência e lhe assegurou com a expressão mais pura e sincera da verdade o seu profundo amor. Otelo, enfurecido pelo ciúme, cobriu-a com a roupa da cama e estrangulou-a. 
                   Não estava porém ainda morta quando a porta do quarto se abriu e Emília, que ouvira o ruído da luta, entrou precipitadamente e contou a Otelo todas as mentiras e intrigas  de Yago, exclamando que o mouro enganado por aquele tratante, tinha assassinado uma santa, cujas últimas palavras tinham sido de expressão do seu profundo amor pelo marido. 
                   Nesse momento entrou Yago e, vendo-se denunciado por sua mulher, apunhalou-a cheio de raiva e quis fugir em seguida; porém, agarrado pelos servidores de Otelo, trouxeram-no estes à presença de seu amo que, cheio de furor, o feriu  de morte. 
                   Compreendendo, no meio da sua terrível dor, quanto fora imbecil fiando-se numa tão mesquinha e torpe criatura como era Yago, a ponto de desconfiar  de uma esposa tão fiel, dedicada e boa, Otelo, desesperado, apunhalou-se, e, caindo sobre o corpo da inocente e linda  Desdêmona, exclamou, já nas ânsias da agonia:
                   - Oh! minha Desdêmona! Antes de te matar beijei-te; o que havia eu fazer depois, senão matar-me também e morrer abraçado a ti!

NOTAS SOBRE AS OBRAS DE SHAKESPEARE 
A maioria dos enredos das comédias e tragédias de Shakespeare já se encontravam em narrativas que ele não tinha inventado. Muito antes do grande poeta os empregar nas suas obras dramáticas, muitos desses enredos já eram populares na Europa. No entanto, estariam agora e para sempre esquecidos se ele não os tivesse repetido por intermédio das personagens imortais criadas pelo seu gênio e com sua linguagem maravilhosa. Shakespeare escreveu tragédias e comédias, e foi igualmente célebre em ambos os gêneros. 
Pesquisa, resumo e postagem 
Nicéas Romeo Zanchett 
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terça-feira, 17 de setembro de 2013

A MORTE DO LOBO - Por Camilo Castelo Branco


A MORTE DO LOBO 
 Por Camilo Castelo Branco 
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                Padre Justino entrava e saia de noite com resguardo exemplar. Acautelava-se em mais de um sentido. Ia com grande fé no preceito do santo e num clavinaço de dois canos, por causa dos lobos que são os policiais importunos aos vagabundos noturnos daqueles sítios. 
                Uma noite de Novembro caia neve, e os aspectos do céu profundamente frio tinham umas estrelas trêmulas, lucilantes, e um luar álgido que dava às concavidades nevadas a claridade nítida duns lagos de prata fundida. O Padre vestia polainas de saragoça assertoadas, tamancos ferrados e suspensos nas fortes presilhas das polainas, jaqueta de peles e uma carapuça alentejana escarlate, que lha abafava as orelhas. debaixo da lapela da véstia resguardava a escorva da clavina, e caminhava curvado com as mãos nas algibeiras e os olhos vigilantes nas gargantas dos serros. Uivos longínquos de lobo ouviam-se e punham-lhe vibrações na espinha,e um terror grande naquela imensa corda de serras, onde ele, àquela hora, se considerava o único ente exposto a ser comido pelas feras esfomeadas. Pulava-lhe o coração. Ao trepar a um outeiro, entaliscado de rochedos que pareciam resvalar de encontro a ele, ouviu o uivo ali perto, para lá da espinha do serro.  Tirou a clavina do sovaco, e lívido, com a sensação estranha do figado despegado, meteu o dedo tremente, automático no gatilho. Fez um ato de contrição; provava quanto as religiões são importantes, urgentes, nas crises, nos conflitos sérios do homem com o lobo. esperou. A fera assomara na lomba do outeiro, recortando-se esbatida no horizonte branco com uma negrura imóvel, sinistra; parecia um bronze, um emblema de sepulcro. Ela quedou-se por largo espaço num aspecto de admiração, de surpresa. Depois, descaiu sobre as patas traseiras, com ares contemplativos, de uma pacatez fleugmática. Mediam trinta passos entre a fera e o frade. Estava ao alcance de bala o lobo; mas o frade, caçador astuto, manhoso, receava perdem um dos tiros. Pôs-lhe a pontaria com um gesto de espalhafato; dava gritos como quem açula cães; "Boca! pega! cerca! Ai vai lobo!" Ecos respondiam; e a fera, menos versada na física dos sons reflexos, olhava crespa, espavorida, para o lado em que repercutiam os brados. Ergueu-se, e desceu mui de passo, com uns vagares irônicos, com a cauda de rojo e o dorso erriçado, a ladeira da colina. O padre via-a negrejar na linha flexuosa do declive. Pensou retroceder; mas o lugarejo de Felícia estava mais perto que a sua aldeia, e para aquele lado latiam cães de um faro que adivinha o lobo antes de lhe ouvir o uivo, e o fariscavam pela inquietação das rezes dos currais. Trepou afoito ao teso do outeiro; ganhara ânimo; bebera uns tragos de aguardente de uma cabana atada com o polvorinho no córrego. Sentiu-se capaz de afrontar o rebelde, se ele o não respeitasse como rei da criação, segundo afirmativas de teólogos que nunca viram lobo. Do topo olhou para baixo; não o avistou. Carcavava-se um alagar emaranhado de bravio espesso onde se embrenhara. Estugando o passo, ganhou uma clã ladeada de extensas leiras de feno alvejantes como um estendal de lençóis; e quando olhava para trás receoso viu a alimária, a grandes passos, com a cabeça alta atravessar a leira da esquerda, parecendo querer cortar-lhe o passo na extrema do caminho que entestava com a aldeia.  O padre agachou-se, coseu-se com o valo das urzes e giestas que formavam o tapume das terras cultivadas, e muito derreado, arquejando com o dedo no gatilho, e a fecharia rente da barba, caminhou paralelo com o lobo que o farejava de focinho  anelante e as orelhas fitas; e assim que a fera passou de perfil em frente ao tapigo, o rei da criação, que o era pelo direito do bacamarte, despediu-lhe a primeira bala com a destra pontaria de quem havia já matado águias com zagalotes. O lobo, varado pela espádua até o coração, decaiu sobre um dos quadris, escabujou em roncos frementes, espargindo flocos de neve, ergueu-se ainda interiçado numa grande agonia, e morreu. 
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BREVE BIOGRAFIA 
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco, nasceu a 16 de Março de 1825 em Portugal. Foi escritor, romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta tradutor. Foi o primeiro Visconde de Correia Botelho. Sua obras principais foram Amor e Perdição e a Morgada de Romaris. Em Portugal foi filmado sua obra Mistérios de Lisboa. Faleceu em 01 de Julho de 1890. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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