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domingo, 23 de fevereiro de 2014

UMA PAIXÃO NO DESERTO - Por Balzac



UMA PAIXÃO NO DESERTO 
 Por Honorato Balzac 
ou Honoét Balzac 
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                    No tempo da expedição empreendida no Alto-Egito pelo general Dessaix, um soldado Provençal, tendo caído em poder do Maugrabinos, foi levado por estes árabes aos desertos situados além das cataratas do Nilo. Tendo em vista porem entre si e o exército francês um espaço bastante para a sua tranquilidade, os Maugrabinos fizeram uma marcha forçada, e só à noite é que pararam. Acamparam-se em roda de um poço encoberto por palmeiras, junto das quais haviam precedentemente enterrado algumas provisões. Não imaginando que a ideia da fuga entrasse na cabeça do prisioneiro, contentaram-se com prender-lhe as mãos, e adormeceram depois de terem comido algumas tâmaras, e dado cevada aos cavalos. Quando o atrevido Provençal viu os inimigos em estado de não poderem espioná-lo, serviu-se dos dentes para apoderar-se de uma cimitarra, depois, ajeitando-se com os joelhos para fixar o gume, cortou as cordas que vedavam o uso das mãos e ficou imediatamente livre. Para de logo lançou mão de uma cimitarra e de um punhal, precaveu-se com uma provisão de tâmaras secas, com um pequeno saco de cevada, com pólvora e balas; cingiu uma cimitarra, cavalgou, e desfilou na direção em que supos que estaria o exército francês. Impaciente por encontrar um bivac, incitou de tal forma o corcel já fatigado, que o pobre animal expirou, aberto dos peitos, deixando o francês no meio do deserto.
                   Depois de ter caminhado por algum tempo pela areia com toda a coragem de um forçado que se evade, o soldado viu-se obrigado a parar, no findar do dia. Apesar da beleza do céu das noites do oriente, não se sentiu com forças para continuar o caminho. Felizmente pode chegar a uma eminencia, no alto da qual se erguiam algumas palmeiras, cujas folhas, de ha muito tempo avistadas, despertaram no seu coração as mais doces esperanças. O cansaço era tamanho que se deitou sobre uma pedra de granito, caprichosamente entalhada em forma de leito de campanha, e ali adormeceu sem se lembrar de tomar precauções para enquanto dormisse. Fizera o sacrifício da sua vida. O último pensamento foi uma saudade. Arrependia-se de ter evadido de entre os Maugrabinos, cuja vida errante começava a sorrir-lhe, desde que se vira longe deles e sem socorros. O sol veio acordá-lo com os despiedados raios batendo de chofre sobre o granito, produzindo um calor intolerável. O Provençal colocara-se desajeitadamente no sentido inverso da sombra projetada pelas grimpas verdejantes e majestosas das palmeiras... Contemplou aquelas árvores solitárias e estremeceu! Lembravam-lhe as criptas elegantes e coroadas de longas folhas que distinguem as colunas serranas da catedral de Arles. 
                 Mas quando, depois de ter contado as palmeiras, lançou os olhos em volta de si, o mais terrível desespero se apoderou de sua alma. Via em torno um oceano sem limites. As areias enegrecidas do deserto se alongavam a perder de vista em todas as direções, e faiscavam como lâmina de aço refletindo uma luz viva. Mal sabia se aquilo era um mar de gelo, ou de lagos unidos como um espelho. Arrebatado pelas ondas, um vapor de fogo tumultuava por este solo movente. O céu apresentava um brilho oriental de uma limpidez desesperadora, porque nesses momentos nada deixa a desejar à imaginação. O céu e a terra estavam em fogo. O silêncio aterrava pela imponente e terrível majestade. O infinito e a imensidade comprimiam a alma em todos os sentidos: nem uma nuvem no céu, nem uma bafagem no ar, nem um acidente no meio da areia agitada por vagazinhas miúdas! finalmente, o horizonte terminava, como o do mar, quando está manso, com uma linha de luz tão nítida como o gume de um sabre.
                 O Provençal apertou o tronco de uma das palmeiras como se fosse o corpo de um amigo; depois ao abrigo da sombra tíbia e reta que a árvore desenhava sobre o granito, desatou a chorar, assentou-se e deixou-se ficar ali, contemplando com uma tristeza profunda a cena implacável que se abria a seus olhos. Gritou, clamou, como para interrogar a solidão. A voz, perdida nas cavidades da eminencia, produziu ao longe um som frouxo, que nem acordou os ecos; o eco era dentro do coração; o Provençal tinha vinte e dois anos, e engatilhou a carabina.  
                  - A todo o tempo é tempo! disse ele consigo, deixando ele no chão a arma libertadora.
                 Contemplando de vez em quando o espaço cinzento e o espaço azul, o soldado sonhava com a França. Escutava com delícias os regatos de Paris, lembrava-se das cidades por onde tinha passado, das fisionomias dos camaradas, e das mais leves circunstâncias de sua vida. Enfim, a imaginação meridional fez-lhe imediatamente representar os calhaus da querida Provença nos efeitos do calor que ondulava por sobre a superfície extensa do deserto. Receando todos os perigos desta cruel miragem, desceu pelo sítio oposto àquele por onde subira na véspera para a colina.  Teve uma grande alegria ao descobrir uma espécie de gruta, feita naturalmente pelos imensos blocos de granito que formavam a base deste montículo. Os restos de uma esteira deixavam conhecer que este asilo fora em tempo habitado.  A alguns passos de distância descobriu algumas palmeiras carregadas de tâmaras. Então o instinto que nos prende à vida, acordou-se-lhe dentro do coração. Teve esperança de viver o bastante para esperar pela passagem de alguns Maugabinos, ou, porventura, chegaria a ouvir o estrépido dos canhões; porque neste tempo Bonaparte percorria o Egito. Reanimado por este pensamento, o francês deitou abaixo alguns cachos de tâmaras maduras sob o peso dos quais as palmeiras pareciam vergar, e certificou-se, ao saborear este maná inesperado, que o habitador da gruta cultivara essas fruteiras. A polpa saborosa e fresca das tâmaras denunciavam, com efeito, os cuidados do seu predecessor. O Provençal passou subitamente de um desespero sombrio para uma alegria quase louca. Tornou a subir para o alto da colina, e ocupou-se durante o resto do dia a cortar uma das palmeiras infecundas, que, na véspera, lhe serviram de abrigo. Uma vaga recordação o fez lembrar-se dos animais do deserto; prevendo que poderiam vir beber na nascente perdida nas areias que borbotava ao sopé dos blocos da rocha, resolveu de se premunir contra aquelas visitas, colocando um atranco à porta de seu eremitério. Apesar de todo o ardor, apesar das forças que lhe deu o medo de ser devorado durante o sono, foi-lhe impossível cortar a palmeira em muitos pedaços nesse dia; ao menos conseguiu derrubá-la. Quando, ao cair da noite, caiu também essa rainha do deserto, o ruido da sua queda retumbou ao longe, e foi como um gemido soltado pela solidão; o soldado estremeceu como se ouvisse alguma voz predizer-lhe uma desgraça. Mas, como um herdeiro, que se não com padece por muito tempo com a morte de um parente, desejou aquela bela árvore das altas e largas folhas verdes que lhe servem de poético ornato,  para compor a esteira em que tinha de se deitar. 
                         Extenuado pelo calor e pelo trabalho, adormeceu debaixo da abóboda vermelha da sua gruta úmida. Lá pela noite adiante o sono foi-lhe perturbado por um ruído extraordinário. Sentou-se estremunhado, e o silêncio profundo que fazia deixou-lhe perceber o acento alternativo de uma respiração cuja selvagem energia não podia pertencer a criatura humana. Um profundo medo, aumentado de mais a mais pela obscuridade, pelo silêncio, e pelas fantasias do despertar, lhe gelaram o coração. Apenas sentiu a dolorosa contração dos cabelos quando, à força de dilatar as pupilas dos olhos, descobriu na sombra dois clarões frouxos e amarelados. Primeiramente atribuiu aquelas luzes a algum reflexo das suas meninas dos olhos; mas, imediatamente, a viva claridade do noite ajudando-o gradualmente a distinguir os objetos que se achavam na gruta, descobriu um animal enorme deitado a dois passos de si. O Provençal não tinha a suficiente  instrução para saber em que subgênero estava classificado seu amigo; o terror foi tão violento, quanto a ignorância lhe fez supor em globo todas as desgraças. Suportou o cruel suplício de escutar, de reparar nos caprichos desta respiração, sem nada deixar escapar, e sem ousar fazer o menor movimento. Um cheiro tão forte como o que exalam as raposas, porém mais penetrante, mais acre por assim dizer, tresandava na gruta; e quando o Provençal o cheirou, sentiu o cumulo de terror, porque já não podia por em dúvida a existência do terrível companheiro para quem o antro real seria de bivac. Para de logo os reflexos da lua que declinava para o horizonte aclararam a toca, fazendo insensivelmente reluzir a pele mosqueada de uma pantera. Esse grande leão do Egito dormia enroscado como um canzarão, sossegado, possuidor de uma camisola suntuosa à porta de um palácio; os olhos abertos por alguns instantes, tornaram-se a fechar.  Tinha o focinho voltado para o Francês. Mil pensamentos confusos passaram na alma do prisioneiro da pantera; primeiro que tudo lhe veio à cabeça matá-la com um tiro de carabina; mas conheceu que não havia bastante espaço entre si e ela para fazer pontaria, e o cano passava além do animal. E se o acordasse! A hipótese tornou-o imóvel.  Sentindo bater o coração no meio do silêncio, maldizia as pulsações fortíssimas que a afluência do sangue produzia, receando perturbar um sono que lhe permitia procurar um expediente necessário. Por duas vezes levou a mão à cintura com o desígnio de cortar a cabeça do seu inimigo; mas a dificuldade de cortar um pelo basto e duro o obrigou a renunciar o projeto atrevido. Se lhe falhasse? era morrer com toda a certeza, pensou o Provençal. Preferiu as incertezas de um combate, e resolveu esperar o dia. O dia despontou dali a pouco. Foi quando o Francês pode então examinar a pantera; trazia ainda o focinho sujo de sangue. - Ao que parece, comeu-lhe à larga!... pensou ele sem se preocupar se o festim fora de carne humana; a pantera não há de ter fome quando acordar. 
                    Era fêmea e fera. O felpo do ventre e das coxas era de uma alvura deslumbrante. Muitas e pequeninas salpicadelas, semelhantes a veludo, formavam lindos braceletes em volta das patas. A cauda musculosa era igualmente branca, mas terminada por anéis negros.  O alto do lombo, amarelo como ouro batido, mas liso e escorregadio, tinha essas mosqueadelas características, cambiadas em forma de rosas, que servem para distinguir as panteras das outras espécies de felinos.   
                      O tranquilo e temível hospede ressonava em uma  postura tão graciosa como a de uma gata deitada sobre o coxim de uma otomana. As patas sangrentas, nervosas e bem armadas, estavam estendidas adiante da cabeça que repousava em cima delas, donde se dividiam as barbas raras, hirtas, semelhantes a fios de prata. Se a pantera estivesse assim em uma jaula, o Provençal admiraria com uma certeza e graça dessa fera, e os vigorosos contrastes das cores vivas que davam à sua pele uma majestade imperial; neste momento porém sentia a vista perturbada com o aspecto sinistro. A presença da pantera, apesar de adormecida, fazia-lhe sentir os efeitos que os olhos magnéticos da serpente produzem, segundo se diz, no rouxinol.  A coragem do soldado veio a faltar-lhe por momentos diante deste perigo, ao passo que se sentiria com certeza exaltado ante a boca dos canhões vomitando metralha. Contudo, um pensamento intrépido resplandeceu em sua alma, e extinguiu na origem o suor frio que lhe corria da fronte.  Fazendo como homens que, forçados pela desgraça, chegam a desafiar a morte e se lhe oferecem aos golpes, o Provençal viu de repente uma tragédia nesta aventura, e resolveu representar nela a sua parte com honra até à cena final!
                    - Antes de ontem, talvez que os árabes me tivessem matado!... disse ele consigo. E considerando-se como morto, esperou com audácia e com uma inquieta curiosidade o despertar do inimigo. Quando o sol raiou, a pantera abriu subitamente os olhos; depois espreguiçou-se estendendo violentamente as patas, para dissipar as câimbras. Por fim abriu a boca, mostrando o aterrador aparelho dos dentes e da língua farpada, tão dura como um ralador. Ela é como uma namorada!... Pensou o Francês ao vê-la enrolar-se e fazer os movimentos mais doces e mais lascivos. Lambeu em seguida o sangue que lhe sujava as garras, o focinho, e coçou a cabeça com gestos repetidos, cheios de gentileza. 
                    - Bem!... Está fazendo um poucochinho de toucador!... disse o Francês, que recuperou o bom humor com a coragem; vamos agora dar os nossos bons dias. E empalmou o punhal curto que roubara aos Mougrabinos. 
                    Neste momento a pantera volveu a cabeça para o Francês e fixou-o sem avançar. 
                    A rigidez dos olhos metálicos e a insuportável claridade deles fizeram estremecer o Provençal, principalmente quando a fera caminhou para ele; contemplou-a com um ar carinhoso, empiscou-a como para magnetizar, e deixou-a aproximar até perto de si; depois com um movimento tão doce, tão amoroso como se quisesse acariciar a mais linda mulher, passou-lhe a mão por todo o corpo, da cabeça até ao rabo, arranhando com as unhas as flexíveis vértebras que repartiam o dorso amarelo da pantera. A fera estendeu volutuosamente a cauda, e os olhos adoçaram-se-lhe; e quando, pela terceira vez, o Francês acabou esta blandícia interesseira, ela soltou um desses rum-rum, com que os gatos exprimem o prazer; porém este murmúrio saia de umas fauces tão valentes e profundas, que reboaram na gruta como os últimos ruídos do órgão em uma igreja. O Provençal, compreendendo a importância de suas carícias, repetiu-as de maneira para desvairar e domar esta messalina imperiosa. Logo que conheceu que tinha extinguido a ferocidade  de sua caprichosa companheira, cuja fome fora desgraçadamente tão fartada na véspera, levantou-se e quis sair da caverna; a pantera deixou-o sair à vontade, mas quando descia já a colina, saltou com a ligeireza com que os pardais saltam de ramo em ramo, e veio roçar-se pelas pernas do soldado, arqueando o dorso, à maneira dos gatos. Depois, contemplando o hóspede com uns olhos cujo brilho se tornara menos inflexível, soltou esse grito selvagem que os naturalistas comparam ao ruído de uma serra.
                     Ela é exigente? exclamou o Francês sorrindo-se. 
                     E experimentou o brincar-lhe com as orelhas, esfregando-lhe o ventre e coçar-lhe fortemente a cabeça com as unhas. E, conhecendo o bom resultado, esgravatou-lhe o cranio com a ponta do punhal, calculando o instante de a matar; porém a dureza dos ossos lhe fez recear de o não conseguir. 
                     A sultana do deserto agradeceu a a habilidade do escravo erguendo a cabeça, alongando o pescoço, deixando ver o inebriamento pela tranquilidade da sua postura. O Francês lembrou-se de repente que para assassinar de um só golpe a temível  princesa era preciso apunhala-la no pescoço, e ergueu logo o ferro, quando a pantera, saciada sem duvida, se lhe deitou graciosamente aos pés  lançando de tempo em tempo olhares em que, apesar de um vigor nativo, se representava confusamente a benignidade.  O pobre Provençal comeu as suas tâmaras encostando-=se a uma das palmeiras; mas de quando em quando lançava um olhar investigador pelo deserto para ver se avistava alguns libertadores, e à sua terrível companheira para lhe espiar a incerta clemência. A pantera olhava para o sítio em que os caroços das tâmaras caiam, cada vez que o Provençal atirava algum, e os olhos então exprimiam-lhe um incrível desconfiança. Examinava o Francês com uma prudência  comercial; porém o exame foi-lhe favorável, porque logo que acabou o frugal repasto , a pantera lambu-lhe as botas, e com a língua forte tirou-lhe miraculosamente a poeira  encrustada nas vincas. 
                      - Mas logo que ele tiver fome? ... pensou o Provençal. Não obstante o estremecimento que lhe cousou esta ideia, o soldado começou a medir curiosamente as proporções da pantera, com certeza um dos mais belos exemplares da espécie, porque tinha três pés de altura e quatro de extensão sem contar com a cauda. Esta arma poderosa, redonda como um cacete, era quase de três pés de comprimento. A cabeça, grande como a de uma leoa, distinguia-se por uma rara expressão de finura; a fria crueza dos tigres predominava ali, mas tinha também uma vaga parecença com a figura de uma mulher artificiosa. Finalmente, a figura da rainha solitária revelava neste momento uma espécie de  alegria semelhante à de Nero embriagado; dessedentara-se com sangue e queria brincar. O soldado tentou andar para cá e para lá, a pantera deixou-o livre, contentando-se de seguir com os olhos, parecendo-se assim menos com um cão fiel do que com uma grande angora inquieta por tudo, até com os movimentos do seu senhor. Quando o soldado se voltou para o lado da fonte descobriu os restos do seu cavalo; a pantera tinha arrastado para ali os despojos. Dois terços, pouco mais ou menos, já tinham sido devorados. Este espetáculo asserenou o Francês. Foi-lhe fácil explicar-lhe a ausência da pantera, e o respeito que lhe catara durante o sono. Esta primeira felicidade o animava a tentar o futuro e chegou a conceber a louca esperança de viver de boa avença com a pantera durante o dia todo, não deixando escapar nenhum meio de cativar e conciliar as suas boas graças. Tornou para o pé dela, e teve a inefável felicidade de lhe ver sacudir a cauda com um movimento quase insensível. Sentou-se então sem temor junto dela, e puseram-se a brincar ambos; o Francês pegou-lhe nas patas, no focinho, estorcegou-lhe as orelhas, deitou-a de costas, e coçou rigidamente os vazios quentes e sensíveis. Deu-lhe licença para tudo; e quando o soldado quis alisar-lhe o pelo das patas, encolheu cuidadosamente as unhas recurvadas como cimitarras. O Francês que conservava uma mão sobre o punhal, pensava em enterrá-lo no ventre da confiadíssima pantera; mas tinha medo de ser imediatamente estrangulado pela última convulsão que a agitasse. De mais a mais, sentia no imo do coração um remorso, que mandava respeitar uma criatura inofensiva.     Parecia-lhe ter achado uma amiga neste deserto sem limites. E pensou imediatamente na sua primeira amante, a quem chamava pequenina,  por antífrase, porque era de um tão atroz ciume, que durante o tempo que durou essa paixão teve sempre a temer o punhal com que sempre o ameaçou. Esta recordação da mocidade sugeriu-lhe a ideia de fazer dar por este nome a jovem pantera cuja agilidade, graça e languidez admirava agora com menos medo. 
                    Pelo fim do dia já estava familiarizado com a sua situação perigosa, e quase que amava as emoções. Finalmente a companheira acabara de tomar o hábito de olhar para ele quando lhe chamava com voz de falsete: pequenina. 
                    Ao declinar o sol, Pequenina fez ressoar muitas vezes um grito profundo e melancólico. 
                    - É muito bem educada! pensou o folgazão soldado; está dizendo suas orações!... Mas este gracejo mental só lhe veio ao espírito quando notou a postura ossífica em que permanecia a sua camarada.  Vamos, minha loirinha,  deixar-te-hei deitar primeiro, disse o soldado, fiando-se na atividade das suas pernas para se evadir o mais depressa possível logo que a pilhasse adormecida, para ver se descobria outro covil durante a noite. O soldado esperou com impaciência o instante da fuga, e quando chegou, desfilou vigorosamente na direção  do Nilo; apenas andado um quarto de légua nos areais, quando ouviu a pantera que se arremessava atrás dele, soltando de vez em quando esse grito de serra, ainda mais aterrador  do que o estrépito dos seus saltos. 
                    - Que tal esta! disse o soldado, tomou-me amizade!... Esta pantera nova ainda não encontrou ninguém, e é uma vaidade o gozar os seus primeiros amores. Neste momento o Francês caiu em um desses areais moventes tão temíveis para os viajantes e de que é impossível o salvar-se. Sentindo-se escorregar, soltou um grito de aflição, e a pantera agarrou-o com os dentes pela roupa, e, saltando com vigor para trás, tirou-o do abismo como por magia. 
                    - Ah, Pequenina, exclamou o soldado acariciando-a com entusiasmo, agora um para o outro, para a vida e para a morte. Mas nada de brincadeiras! 
                    E tornou a caminhar para trás. 
                    O deserto desde então pareceu-lhe povoado. encerrava uma criatura a quem o Francês podia falar, e cuja ferocidade se adoçara para ele, sem que pudesse explicar as razões desta incrível amizade. Por mais poderoso que fosse o desejo do soldado de se não deitar, e de estar de mira, sempre adormeceu. Ao acordar já não encontrou a Pequenina; subiu para a colina, e ao longe descobriu-a retoiçando, segundo o costume destes animais, cuja extrema flexibilidade da coluna vertebral lhes veda a carreia. Pequenina chegou com as belfas sujas de sangue, recebeu as necessárias carícias que lhe fez o companheiro, participando-lhe com seu grave rum-rum quanto estava feliz. Os olhos cheios de blandicia volveram-se com mais doçura do  que na véspera para o Provençal, que lhe falava como se fosse a um animal doméstico. 
                      - Ah, ah! donzelinha, visto que sois uma recatada menina, não é assim? Vedes isto? ... Todos gostamos de ser amimados. Não tendes vergonha? Então comeste algum Maugrabino? Está bom!... são animais como vós outros!... Mas nada de devorar algum Francês... quando não, deixo de te amar! 
                      A pantera brincou como um cãozinho brinca com seu dono, deixando-se rolar, bater e afagar de vez em quando; às vezes provocava o soldado avançando a pata para ele, com um gesto solicitador. 
                      Passaram-se alguns dias assim. Esta companhia permitiu ao Provençal o admirar as sublimes belezas do deserto. No momento em que tivesse instantes de temor e de tranquilidade, alimento, e uma criatura em quem pensar, estes contrastes agitavam-lhe a alma... Era uma ida cheia de aparições. A solidão revelou-lhe todos os arcanos, envolveu-o com todos os seus encantos. Descobriu no erguer e no por do sol espetáculos desconhecidos de toda a gente. Soube estremecer ouvindo por sobre a cabeça o doce silvo das asas de um pássaro, raro passageiro, vendo as nuvens confundirem-se, viajantes coloridas e mudáveis! Estudou durante a noite os efeitos da lua sobre o oceano das areias, onde o simum produzia as vagas, as ondulações e rápidas mudanças. 
                      Viveu com a luz do Oriente, e admirou-lhe as pompas maravilhosas; e muitas vezes, depois de ter gozado do terrível espetáculo de um vendaval nestes plainos, onde as areias levantadas produzem cerrações vermelhas e secas, nuvens mortais, via vir a noite com delícias, porque então descia o benfazejo frescor das estrelas. Ouvia músicas imaginárias no céu. A solidão ensinou-lhe a desdobrar os tesouros do devaneio. Passava horas inteiras a lembrar-se de nadas, a comparar a sua vida passada com a presente. Em suma, apaixonou-se pela pantera; era-lhe tão precisa uma afeição! Ou porque a sua vontade, poderosamente projetada, modificasse o caráter da companheira, ou porque ela tivesse encontrado uma alimentação abundante, graças aos combates que se davam então nestes desertos, a pantera respeitou a vido do Francês, que acabou por não desconfiar mais vendo-a tão bem domesticada. Empregava a maior parte do tempo a dormir, mas via-se obrigado a velar, como uma aranha no centro da teia, para não deixar escapar o momento do livramento, se é que alguém passasse na esfera descrita pelo seu horizonte.  Rasgara uma camisa para fazer uma bandeira arvorada no alto de uma palmeira desfolhada. 
                    Aconselhado pela necessidade, soube descobrir o modo de conservar a bandeira estendida por meio de varinhas, porque podia acontecer que o vento não a agitasse no momento em que o viajante esperado contemplasse o deserto... 
                   Durante as longas horas em que abandonava a esperança, é que se divertia com a pantera. Acabara de conhecer as inflexões da sua voz, a expressão dos seus olhares, estudara o capricho de todas as pintas que mosqueavam o amarelo da sua pele. Pequenina nem sequer dava sinal, quando o soldado lhe pegava na cauda e no penacho que a terminava para contar-lhe os anéis negros e brancos, ornamento gracioso, que reluzia de longe ao sol como se fossem pedrarias. Sentia prazer em contemplar as linhas flácidas e finas dos contornos, a brancura do ventre, a graça da cabeça. 
                   Mas, principalmente quando ela retouçava, é que a contemplava à vontade; e a agilidade, a juvenilidade dos seus movimentos o surpreendiam sempre; admirava a flexibilidade quando saltava, se  apajava, escorregava, se encurvava, se agarrava, se enrolava, enrodilhava, ou atirava estonteadamente. Por mais rápido que fosse o ímpeto, por mais escorregadio que fosse o bloco de granito, suspendia-se repentinamente a esta palavra: "Pequenina..."
                   Um dia, por um sol esplêndido, um imenso pássaro librou-se nos ares. O Provençal deixou a sua pantera para examinar o novo hospede; mas depois de um momento de  espera, a sultana abandonada remurmurejou surdamente. 
                    -  Parece-me, assim Deus me salve, que ela tem ciumes, exclamou o soldado vendo os olhos tornarem-se-lhe ríspidos. A alma de Virginia teria com certeza passado para aquele corpo. A águia desapareceu no espaço enquanto o soldado admirava a anca arredondada da pantera. Tinha tanta graça e vaidade nos seus contornos! Era como se fosse uma mulher bonita. A loira pele que vestia combinava com cores finas aos tons do branco baço que distinguia as coxas. A luz profusamente espalhada pelo sol fazia brilhar este ouro vivente, estas manchas cinzentas, de modo que dava encantos indefiníveis. O Provençal e a pantera entre-olharam-se com um ar inteligente, a pantera estremeceu quando ela sentiu as unhas do seu amigo coçarem-lhe o cranio, os olhos reluziram como dois relâmpagos, e depois fechou-os fortemente. 
                    - Ela tem alma... disse o soldado estudando a tranquilidade desta rainha dos areais, doirada como eles, branca como eles, solitária e ardente como eles... 
                    - Está bom! disse-me a interlocutora, li as ossas alegações a favor das feras; mas como é que duas pessoas tão adequadas para se compreenderem vieram a acabar?... 
                    - Ah! Foi assim!... Acabaram como acabam todas as grandes paixões, por um mal entender. Duma parte e de outra julgam que há traição, não se explicam por melindre,  arrufam-se por pertinácia. 
                    - E às vezes nos mais belos momentos, disse ela; um olhar, uma exclamação basta. Pois bem! agora falta acabar a história. 
                    - É horrivelmente difícil, mas apesar disso compreendereis o que me tinha já confiado o velho veterano quando, levando à glória uma garrafa de vinho de Champanhe, exclamou: 
                    - Não sei que mal lhe causei, mas a pantera voltou-se como se estivesse enraivecida; e, com os dentes aguçados me mordeu a coxa, levemente por ventura. Eu cá, julgando que me queria devorar, enterrei-lhe o punhal no pescoço. A pantera rolou soltando um grito que me gelou o coração, e vi-a nas vascas da agonia contemplando-me sem cólera. Quisera por tudo quanto há no mundo, pela minha cruz, que ainda não me condecorava, restituí-la à vida.  Era como se eu tivesse assassinado uma pessoa verdadeira. E os soldados que tinham visto minha bandeira e que correram em meu socorro, encontraram-me lavado em lágrimas.
                     - Ora bem, Senhor, replicou ele após um momento de silêncio, depois fiz a guerra da Alemanha, da Espanha, da Rússia, da França, arrastei por bastantes partes este arcaboiço, e nada vi semelhante ao deserto... A! é que aquilo é belo. 
                     - O que é que sentireis ali?... perguntei-lhe eu. 
                     - Oh! isso não é coisa que se diga em palavras. Demais a mais, nem sempre tenho saudade do meu ramo de palmeira e da minha pantera... é preciso que seja triste por cusa disso. No deserto, olhai, há tudo e não há nada... 
                     - Mas, explicai-me? 
                     - Está bom, replicou ele deixando escapar um gesto de impaciência, é Deus sem os homens... 
Honorato de Balzac 

BREVE BIOGRAFIA
              Honorato de Balzac (Honoré de Balzac), romancista francês, nasceu em Tours a 16 de Maio de 1799 e morreu em Paris a 18 de Agosto de 1850. Fez os seus estudos no Colégio Vendome, onde cursou leis. Durante muito tempo viveu em Paris pobremente, mas ao fim de dez anos as suas obras começaram a ser apreciadas, dando-lhe a celebridade. Entre grande número de romances, a maior parte dos quais reunidos sob o título genérico de Comédia Humana, Publicou Le dernier Chouan ou la Bretagne em 1800 - em 1829;  La physiologie du mariage ( 1830); La femme de trente ans (1831); Eugene Grandet (1833); Le Père Gorlot (1837); Historie de la grandeur e de la Décadance de Cesar Birotteau (1838); Mémories de deux jeunes mariees (1842); Une tenebreuse affaire (1843); Modeste Mignon (1844); Une passion dans le desert (Que é esta história aqui traduzida para o português); La cousine Bette; Le coisin Pons; e Les paysans, etc.  Em 14 de Março de 1850 casou com Madame Hanska, de uma nobre família polaca, a quem cortejava há muito tempo. Depois de uma viagem à Áustria, Itália e Rússia, regressou a Paris, morrendo pouco depois. Balzac é considerado o chefe da escola realista dos romancistas franceses. 
Nicéas Romeo Zanchett