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sábado, 5 de outubro de 2013

O REI LEAR - Por Shakespeare



O REI LEAR 
Por Shakespeare
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 Resumo descritivo por Nicéas Romeo Zanchett 
O ERRO E A LOUCURA DE UM REI 
O rei Lear, sentindo-se envelhecer, comete o erro de partilhar os seus Estados entre as duas filhas mais velhas, cuja maldade e falsidade ele não soube perceber, em detrimento da mais nova, a boa e sincera Cordélia. 
Numa noite de tempestade, Lear foi expulso pelas duas filhas mais velhas, e só encontra proteção na boa Cordélia, que ele próprio reduzira à miséria. Lear enlouquece de dor; a sua indignação, os seus lamentos, e a dedicação de Cordélia, deram a Shakespeare os temas das mais belas cenas desta tragédia. 
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             Em tempos muito remotos, na Bretanha, havia um rei  que se chamava Lear. Já estava velho e cansado; tinha mais de oitenta anos e sentia-se sem condições de cuidar do seu reino. Depois de muito pensar, chegou á conclusão de que era chegada a hora de largar sua coroa  e os seus bens e de passar o resto de seus dias em paz.  
              Mas, o velho rei, não tinha um filho varão que lhe sucedesse, tinha só três filhas. A mais velha era Goneril, mulher do duque de Albany; a segunda, Regam, estava casada com o duque de Cornualha; e a mais nova e mais linda de todas, Cordélia, ainda estava solteira. O velho rei Lear resolveu-se a dividir o seu reino entre as três, e reunindo-as todas anunciou-lhes o seu propósito, dizendo que daria a melhor parte àquela que mais o estimasse. 
              Goneril, mulher egoísta e de coração duro, declarou que o estimava mais que a luz dos seus olhos, mais do que à saúde, à beleza, à honra, mais do que a própria vida. Regan, que era tão fria e incapaz de ternura como a irmã mais velha, disse que mesmo a declaração apaixonada de amor de Goneril ainda era pouco para expressar os seu sentimento pelo pai e que a maior alegria que podia ter na terra era agradecer-lhe em tudo e bem servi-lo. 
               Enganado pelas palavras apaixonadas dessas falsas e cobiçosas mulheres, o velho rei deu a cada uma delas uma terça parte do seu reino;  mas quando a boa Cordélia, tão sincera e leal, que adorava o pai  com todo o seu coração, disse que o amava, simplesmente em sem exageros que fossem além do que uma boa filha deve a  seu pai, o rei Lear enfureceu-se contra ela e não lhe deu nada, dividindo a sua parte entre as suas irmãs mais velhas. 
              No entanto, Cordélia teve uma compensação, pois o rei de França, que a amava pela sua beleza e bondade, fez dela sua mulher. O rei Lear tornara-se tão insensível  à razão que desterrou o fiel conde de Kent, por ele ter se aventurado a advogar a causa de Cordélia junto a seu pai. O reino da Bretanha encontrova-se agora dividido entre Goneril e Regan, cujos maridos, o duque de Albany e o duque de Cornualha,  governavam  no lugar do velho rei. Lear esperava  e desejava passar o restante dos seus dias em repouso, ora em casa de uma ora de outra de suas filhas, atendido pelas centenas de servidores que viviam à disposição delas. Mas, pouco tempo depois de estar morando no palácio de Goneril, percebeu  que o tão apregoado amor da sua filha não passava de uma grande mentira. 
                 Esta princesa fazia todo o possível para tornar a vida de seu pai bem desagradável, e o velho rei em breve se viu obrigado a sair com seu séquito
                 Foi então para o castelo do conde de Gloster, um velho amigo seu que também procedera com seus seis filhos da mesma forma que ele havia procedido com suas filhas. Edmundo, o mais velho, coração egoísta, mau e sem escrúpulos, era o favorito do pai, enquanto Edgard, o seu herdeiro, moço bondoso e honesto, fora obrigado pelas intrigas do irmão a abandonar a casa paterna. 
                 No castelo de Gloster, mais desgostos estavam reservados ao rei Lear. Ali encontrou-se com sua filha Regan, que tinha vindo para combinar com Edmundo a maneira de se desembaraçar de seu pai, o rei Lear, e do seu séquito. Goneril também veio ao castelo, e as duas irmãs juntas tanto fizeram para vexar e atormentar seu velho pai, que este acabou por declarar que não precisava de servidores. 
                  Desiludido, triste, com o coração profundamente ferido, o pobre Lear agora vagueava sem lar e sem rumo, acompanhado apenas pelo seu bobo. Em breve juntou-se a ele o fiel conde de Kent, que se disfarçara para poder ser de qualquer utilidade ao seu amado rei. Numa charneca agreste, solitária  e desolada, no meio de uma grande tempestade, chegaram a uma choça habitada por um homem que parecia louco, mas que , na verdade, era Edgard, o desterrado filho de Gloster, que ali vivia fingindo-se de doente mental. 
                 O velho conde de Gloster desejava  muito prestar auxílio ao rei Lear, apesar das princesas terem proibido de o ajudar de qualquer forma que fosse. Porém Gloster, fiando-se sempre no filho Edmundo, a quem atribuía qualidades que este estava longe de possuir, disse-lhe em segredo as suas intenções de prestar socorro ao pobre Lear; e também lhe mostrou uma carta que acabava de receber, na qual o informavam de que um exército francês se aproximava, com a finalidade de atacar a Bretanha. Edmundo fingiu estar de acordo com seu pai, e prometeu guardar fielmente o seu segredo; mas foi logo mostrar a carta ao duque de Cornualha e contar-lhe das intenções do seu pai em relação ao rei Lear.  Em recompensa por esta traição, o duque de Cornualha despojou o velho Gloster do seu condado e entregou-o a Edmundo. 
                 Entretanto, Gloster, ignorando a traição do filho, hospedara-se numa quinta, perto do seu castelo, não só Lear e seu bobo, mas também o conde Kent e o seu próprio filho Edgard; estes dois últimos disfarçados. Depois mandou o velho rei para Dover, onde os guerreiros daquela região se juntavam a fim de fazer frente aos franceses, que se aproximavam e com os quais vinha Cordélia, a fiel e boa filha de Lear. 
                 O duque de Cornualha aprisionou o conde de Gloster, e tal era a sua fúria contra este velho amigo do rei, que lhe mandou arrancar os olhos; mas logo depois foi mortalmente ferido  por um dos seus servidores, que não pode suportar uma tão covarde brutalidade. 
                 Neste ponto  a tragédia chega ao seu auge. Gloster, cego, é agora  conduzido cuidadosamente por seu filho Edgard para Dover, e, perto da cidade, encontraram o velho Lear, com o juízo perdido e todo enfeitado com flores. Um servidor de Goneril, encontrando-se então com eles, procura matar Gloster, mas Edgard luta contra este homem, mata-o e descobre que ele era portador de uma carta de amor de Goneril para seu irmão Edmundo. 
                 Lear foi então levado ao acampamento dos franceses em Dover, onde a sua filha Cordélia, que nunca deixara de amar seu injusto pai, o recebeu com muito carinho e ternura, tratando de consolar o velho rei, agora tão enfraquecido tanto de corpo como de espírito. Mas a guerra entre a França e a Bretanha não era tão feroz como a que se armara entre Goneril e Regan. estas duas más criaturas estavam ambas apaixonadas pelo tratante Edmundo. Quando Edgard entregou a carta de Goneril ao duque de Albany, este desafiou Edmundo, logo depois de uma batalha em que o rei Lear e Cordélia ficaram prisioneiros dos bretões. 
                 Edmundo foi mortalmente ferido pelo duque; mas entretanto as duas irmãs, Goneril e Regan, que se odiavam, tinham liquidado entre si a questão dos seus ciumes e do seu ódio. Goneril envenenara a irmã; porém, sabendo que o marido era conhecedor do seu criminoso segredo, tomado de desespero e de raiva, apunhalou-se. 
                 Edmundo moribundo, arrependeu-se do seu mau procedimento e deu ordem para que a vida de Cordélia fosse poupada; porém o arrependimento e a ordem chegaram tarde. No momento em que ela expirava, apareceu a desolada figura do velho rei Lear trazendo nos braços o cadáver de Cordélia. 
                  O duque de Albany, que sempre fora amigo de Lear, apesar da má influência da esposa, queria agora que o velho rei reassumisse o poder; mas isto  foi impossível; o pobre velho já estava quebrado e gasto pelos desgostos e a morte aproximava-se. 
                  Mas, mesmo assim, o duque mostrou seus sentimentos para seu rei Lear, recompensando Edgar e Kent pelos grandes serviços que eles tinham prestado ao velho rei, durante as suas horas de amargura e decepção. 
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NOTAS FINAIS
        Shakespeare não se limitou a escrever as suas peças, que são das maiores obras primas do teatro de todos os tempos; em muitas ocasiões ele mesmo as representou no Globe Theatre, Southwark.

Nicéas Romeo Zanchett 
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sexta-feira, 27 de setembro de 2013

AS PUPILAS DO SR. REITOR - Por Júlio Diniz


AS PUPILAS DO SR. REITOR
Por Júlio Diniz
                  José das Dornas era um lavrador abastado, viúvo e com dois filhos. Possuía boas e um gênio afável e jovial. Gozava de geral consideração e simpatia na sua aldeia. 
                   Dos seus dois filhos Pedro e Daniel, o primeiro era o retrato do pai; robusto, feito para trabalhos do campo, simples e são de corpo e alma; o segundo, mais novo que ele uns sete anos, apresentava uma compleição débil e pela delicadeza das feições, tom de pele e fraqueza de gênio, mais parecia uma rapariga. 
                   Vendo o pai que Daniel, pela sua constituição e saúde, não poderia, sem perigo, dedicar-se como o irmão aos rudes trabalhos do campo, resolveu-se, depois de se aconselhar com o reitor, a fazer dele um padre. 
                    Para esse efeito, ofereceu-se o reitor a dar-lhe lições de latim. 
                    Tinha o rapaz treze anos apenas, mas mostrara grande facilidade e inteligência para os estudos e andavam portanto José Dornas e o reitor muito satisfeitos, quando este último fez uma descoberta que o convenceu de que Daniel não tinha vocação para o sacerdócio. 
                    Foi o caso que, desconfiado de que o rapaz levava muito tempo no caminho de sua casa para a casa do pai no fim das lições, uma tarde o seguiu e foi dar com ele na companhia de uma pequena guardadora de gado chamada Margarida. Escondeu-se o bom cura e viu e ouviu tudo que se passava. Daniel dava lições de leitura à sua amiga, cantavam e conversavam, fazia projetos de casarem um dia. O reitor ouviu Daniel assegurar à sua amiga que nunca seria padre e que bem enganados andavam o pai e o seu mestre cuidando que ele seguiria tal carreira. 
                  O resultado desta descoberta  do reitor foi a resolução do José das Dornas de mandar o filho para a cidade do porto estudar, desistindo de o fazer padre, e dando-lhe qualquer outra carreira à escolha. 
                  Margarida, a pequena guardadora de gado, ficou desolada com a partida do seu único amigo. 
                  Perdera a mãe muito cedo e o pai casara pela segunda vez e dessas núpcias tivera uma outra  filha, Clara. A mãe de Clara tratava mal a pobre Margarida, fazendo-lhe sentir a sua triste posição naquela casa que não era sua. Efetivamente o pai de margarida era pobre e a sua segunda mulher, rica. Casa, campos, gado, tudo lhe pertencia. Margarida regava com lágrimas o pão que comia. 
                   Assim foi a pobre criança crescendo, cheia de trabalhos e amarguras, que aumentaram com a morte do pai, tendo porém a consolação da grande amizade de Clara que era para ela a melhor das irmãs e a mais afetuosa das amigas, o que Margarida sabia bem reconhecer, como veremos. 
                   Morreu por fim a madrasta de Margarida e à hora da morte arrependeu-se das suas injustiças e crueldades e pediu perdão à enteada. Era porém tarde; Margarida devia ressentir-se toda a vida da sua triste infância. O seu gênio tornara-se melancólico; era calada e pensativa, mas tinha coração de ouro e um juízo e prudência muito superiores á sua idade. Clara, pelo contrario, era uma bela flor do campo, forte, sadia e exuberante de alegria. 
                  Combinaram as duas irmãs que, enquanto Clara se ocupava dos trabalhos das terras empregando assim a sua força e saúde, Margarida dirigia os trabalhos de casa e, não querendo estar às sopas da irmã, organizou uma pequena aula de crianças a quem ensinava. 
                   As duas raparigas tinham como tutor o reitor, que mutoas estimava, tendo lhes ensinado o que sabia e, mais tarde, um velho filósofo que, arruinado, viera da cidade procurar o sossego da sua terra natal p-ara morrer, continuara e desenvolvera as lições do bom padre. Essas lições tinham encontrado excelente terreno, sobretudo na pensativa Margarida que gostava de ler e cujo espírito assim se elevara e se aperfeiçoara. 
                   Estavam as coisa neste ponto, quando Pedro, o filho mais velho de José das Dornas, começou a afeiçoar-se a Clara, o que encheu de júbilo o velho lavrador ao ver,  não só que o filho viria a casar com uma excelente e linda rapariga, como os seus bens assim cresceriam, pois, como já dissemos, Clara tinha bastante de seu. 
                   Entretanto chegou Daniel à aldeia com seu curso terminado. Tornara-se um lindo rapaz, esbelto, de feições delicadas e no seu vestir e maneiras um verdadeiro senhor da cidade. 
                   A sua chegada fez grande impressão na aldeia. Todos queriam ver o "doutor novo", como lhe chamavam. Ente as pessoas que afluíram à casa do José das Dornas a cumprimentar-lhe o filho, encontrava-se o velho médico da terra, o bom João Semana, tipo que o autor tão bem descreve que o seu nome ficou para sempre em Portugal, usando quando se quer designar um perfeito médico de aldeia. 
                  Este João Semana, apesar dos seus oitenta anos, percorria todos os dias aquelas freguesias a cavalo, visitando os seus doentes a quem acudia, não só com socorros clínicos, como com os socorros pecuniários que os seus meios lhe permitiam. 
                  Pouco ou nada versado nos progressos da ciência médica, conservava o seu receituário antigo com o qual, dizia, se dava muito bem. Em resposta a Daniel, que lhe recitava um autor em voga, ou uma descoberta notável ou um medicamento novo, João Semana encolheu os ombros com ceticismo: 
                  - "Tudo isso é muito bonito", disse ele, "mas não serve para nada. Eu penso que lá por fora nessas terras grandes, há fábrica de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também; cá à aldeia não chegam. Você para cá virá. Há de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco; mais gástricas e menos gástricas e disse". 
                   O bom João Semana mostrava-se rabugento com os seus doentes, berrava, acabava por lhes valer sempre e, com os seus conselhos e esmolas escondidas, sempre lhes acudia. 
                   Tinha o velho doutor o costume de contar muitas anedotas, quase sempre a respeito de frades, e assim a cada passo interrompia o que estava dizendo para vir com a sua história. Ora, estava toda aquela aldeia acostumada ao velho João Semana, aos seus modos  bruscos, à sua bondade paternal, à sua pureza de costumes; e Daniel, com seus vinte anos e pouco juízo, só acarretou censura e desconfianças. 
                    Em casa do merceeiro foi para tratar de doença, começou logo a fazer versos à filha do tendeiro, e toda a família, contentíssima, julgou que ele casaria com a moça. Mas quando viram que aquilo não passava de brincadeira, ficaram furiosos e principiaram a falar mal do Daniel que assim criou na aldeia má fama, que por seus disparates e loucuras se foi agravando. Era tal a sua inconsequência e falta de juízo, que, achando bonita o moça por quem seu irmão se afeiçoara, a Clara, não hesitou em lhe mostrar a sua admiração. A rapariga, por seu lado, achava-lhe graça e ia levando, com o seu gênio alegre e descuidado, aquelas atenções de Daniel de brincadeira. 
                  Daniel não era mau, mas sim muito novo e costumado àquela vida de estudante, muito descuidada e imprudente. Incapaz de uma má ação, não tinha, no entanto, força para contrariar os seus gostos e assim se deixava ir, sem pensar, a fazer coisas que a sua consciência de homem de bem, reprovava. 
                  Margarida nunca esquecera aquele tempo da sua infância em que Daniel, um garoto de treze anos, lhe ensinara a ler, cantava e conversava horas com ela, e lhe prometia casamento para quando fossem ambos crescidos. Daniel fora a sua única alegria naquela época tão triste da vida da pobre rapariga e ela guardava-lhe no fundo do seu belo coração tão fiel, um grande reconhecimento e uma grande ternura. Mas, como era orgulhosa e não queria que Daniel nem pessoa alguma pudesse pensar que ela, pobre e humilde, aspirava a tal casamento, a ninguém dizia, nem a Clara, o que tinha no pensamento e tratava de evitar encontrar-se com Daniel; de modo que este, completamente esquecido da sua afeição de criança, mal sabia da existência de Margarida. 
                   A pobre margarida andava muito preocupada com o que se passava entre a irma e Daniel. Não eram ciúmes o que ela sentia; na sua alma grande demais não havia lugar para sentimentos que não fosse grandes e nobres. Afligia-a a imprudência e leviandade da irmã. 
                   Daniel passava todas as tardes a cavalo pela casa das pupilas do senhor reitor e demorava-se a conversar com Clara, que o esperava à janela. É certo que Margarida, costurando pela banda de dentro da janela, junto de Clara, assistia a conversa; masa Daniel não a via e ignorava a sua presença. 
                  Por fim, muito instada pela irmã que lhe apontava os perigos e a aconselhava a ser prudente e a ter juízo, Clara resolveu-se a acabar com tal intimidade e proibiu Daniel de continuar com as suas conversas. 
                  Porém Daniel, que achava graça àquela brincadeira que, na sua leviandade, lhe parecia inocente., não desistiu de bom grado e perseguia Clara procurando falar-lhe. Por fim conseguiu que ela lhe prometesse uma entrevista, de noite, no jardim, para poder explicar-lhe tudo à vontade e ela não ficar fazendo dele uma má ideia.
                   Ora, aconteceu que nessa mesma noite Pedro, o filho mais velho de José das Dornas e noivo de Clara, saiu de casa para poder chegar de madrugada a um campo das suas propriedades, onde queria vigiar uns certos trabalhos que lá fazia. 
                    Ao passar pela casa das duas irmãs, deteve-se um pouco ; quem sabe se Clara estaria acordada?  Pôs-se a cantar em voz alta, mas logo se interrompeu parecendo-lhe ouvir certo ruído por detrás do muro do jardim. 
                    Bateu ao portão perguntando quem estava ali. Mas, como ninguém lhe respondesse, mudou de plano e afastou-se cantando. Depois, voltou para traz cautelosamente e calado e, pondo-se à escuta à porta do jardim, ouviu vozes de duas pessoas que conversavam animadamente. Deu-lhe um salto o coração; passou-lhe pelo pensamento a ideia horrível de que Clara estaria falando a outro homem. 
                    As vozes aproximavam-se da porta. Pedro, sem saber o que fazia e com a cabeça perdida, pôs o dedo no gatilho da espingarda que levava consigo. 
                    A porta abriu-se e apareceram no limiar dous vultos, um de homem e outro de mulher. 
                     - Alto, miserável! Pára ou estás morto!, bradou Pedro. 
                     O homem estacou. Dentro do jardim ouviu-se um grito de mulher e a porta, empurrada com força, vei fechar-se com estrondo. 
                     Pedro avançou para o homem. 
                     - Quem és? Quero conhecer-te antes de te matar!. 
                     E lançando mão ao desconhecido, desembuchou-o; o luar bateu de chapa na cara de Daniel. 
                     Não há palavras que possam explicar o que se passou então na alma do pobre Pedro. 
                     - Daniel!, exclamou ele assombrado. 
                    E ficaram os dois algum tempo calados um defronte do outro. 
                    Daniel, abatido, parecia fulminado. Que desespero e que arrependimento e como ele maldizia agora a sua leviandade. 
                    - Pela alma da nossa mãe, Daniel, disse Pedro por fim, sai daqui se não queres que suceda alguma desgraça! 
                   Daniel ainda queria falar, explicar ao irmão o que se passara, mas o outro gritou-lhe de novo que fugisse; e nisto a mão de um homem pousou no ombro de Daniel. Era o reitor que por acaso ali passava e ouvira e vira o que sucedera. 
                   - Retire-se!, exclamou ele severamente. Eu tinha previsto esta desgraça!
                   Pedro afastara-se. Dirigindo-se para a porta do jardim, tentava arromba-la às coronhadas. 
                   Mal o padre se aproximava, cedeu a porta e Pedro, meio doido, precipitou-se para dentro do jardim. Esbarrou numa mulher que lhe caiu aos pés bradando:    
                   - Pedro, Pedro! Não me queira perder!
                   Era Margarida!
                   Pedro não caia em si de espanto. Era então Margarida e não Clara, que se encontrava no jardim com Daniel! Que alívio sentiu o coração de Pedro! 
                   Quando o reitor chegou, encontrou-os nesta posição. Caminhou com o rosto severo para a mulher, mas recuou também espantado, ao reconhecer Margarida. 
                   De repente o bom homem adivinhou tudo: Margarida, a irmã sublime, a santa rapariga, acabava de se sacrificar para salvar a irmã. 
                   O reitor fingiu acreditar e voltando-se para Pedro, disse-lhe. 
                   - E que mais tens que ver aqui homem? 
                   - Tenho que pedir perdão a todos. 
                   O reitor empurrou-o brandamente para fora, dizendo: 
                   - Vai, vai. Deixa isso para outra vez. 
                   Nisto, como a madrugada rompia ia-se juntando gente, curiosos que o ruído tinha ali chamado. O reitor voltou-se para eles todo zangado. 
                   - E vocês, que fazem ai pasmados? Andar! e ter cautela com a língua. Ouviram? 
                   Os curiosos dispersaram-se, mas a recomendação do bom reitor de nada lhes aproveitou, pois ainda antes do meio dia, já toda a aldeia estava fervendo em notícias disparatadas. Uns diziam que Pedro encontrara o irmão conversando com Clara e que ferira Daniel com um tiro de espingarda; outros asseguravam que se tratava de margarida e não faltava quem pusesse à rasa a santa rapariga; havia quem afirmasse que Pedro matara o irmão, quem tivesse ouvido o tiro e visto o sangue na rua. Assim a fantasia e maldade iam bordando a história e o resultado de tudo isto foi o descrédito de Margarida. As mães já não deixavam as suas filhas frequentarem a aula da pobre rapariga que aceitava tudo com uma resignação infinita, contente no fundo do coração por ter salvo a sua querida Clara. 
                   Mas o reitor é que não entendia as coisas assim. Obrigou a sua pupila preferida a atravessar a aldeia pelo seu braço. Ao chegarem ao largo, muitas discípulas de Margarida que ali andavam brincando, correram para a abraçar; mas as mães sentada pelas portas não as deixaram, chamando-as para junto de si. 
                   Então o reitor, voltando-se para aquelas mulheres, exprobou-lhes a conduta com severidade e para dar o exemplo, mostrar a todos o alto conceito em que tinha a pupila e significar o respeito que ela merecia à sua virtude e seus cabelos brancos, curvou-se diante dela e beijou-lhe a mão, chamando todas as crianças e mandando-as fazer o que ele fizera. 
                   As crianças obedeceram bem alegremente pois adoravam a sua mestra e as mães foram-se chegando a margarida, arrependidas, e abraçaram-na.
                  Nisto chegou José das Dornas que tendo visto o que se passara também, diante de todos, beijou a mão de Margarida dizendo-lhe palavras de sentida amizade e respeito. 
                  Então o reitor disse à pupila que fosse fazer uma visita ao seu velho mestre que estava muito mal e, ficando só com o lavrador, principiaram os dois a conversar sobre o caso. 
                   José das Dornas estava todo ralado com aquela nova loucura do Daniel e falava em mandá-lo para o Brasil, mas o reitor convenceu-o que o melhor seria casa-lo com Margarida. O lavrador, que estimava muito a irmã de Clara, mostrou-se favorável àquela ideia. 
                   Entretanto Margarida, entrando em casa do seu velho  mestre, encontrou-o só e agonizante. 
                   Na sua aflição não sabia o que fazer, quando chegou de repente Daniel; mas o pobre homem  já não tinha cura e pouco depois morria.  Então ali, na presença daquele cadáver, Daniel, tomando o céu como testemunho da sua sinceridade, disse a Margarida que gostava dela, que se lembrava agora dos seus tempos de criança e de quando fugia para ir ter com ela e ensinar-lhe a ler e acabou por lhe pedir que o aceitasse por marido. A pobre Margarida que morria por ele havia tanto tempo, não quis porém aceitar aquele oferecimento que repugnava ao seu orgulho. Receava que, da parte de Daniel, aquilo fosse um simples movimento de generosidade, e receava também que a acusassem de aproveitar a ocasião para apanhar um marido rico, ela que nada tinha na terra. 
                   Porém o reitor,  Clara e Daniel tanto insistiram que ela teve que ceder, sobretudo quando Clara ameaçou de contar a verdade toda, se ela teimasse em recusar. Contar a verdade era perder-se, era fazer a sua desgraça, a de Pedro, a d Daniel. Margarida não teve remédio senão ceder. 
                   Estavam todos reunidos em casa das duas raparigas, o reitor, José das Dornas, Pedro e Daniel, quando chegou o bom João Semana esbaforido porque ouvira os boatos mais extraordinários; que houver sangue, que Pedro andara para matar o irmão, que este fugira, e outras coisas assim. 
                   O reitor mandou-o subir para a sala e ai ficou o velho doutor pasmado, sendo José das Dornas, sentado, limpando uma lágrima de satisfação, a uma janela Clara e Pedro conversando, à outra  Daniel e Margarida. 
                   João Semana olhava para tudo aquilo sem entender nada, até que deu com os olhos no reitor que lhe pregou uma risada. 
                   - isto, que quer dizer? perguntou ele afinal. 
                   - Quer dizer,respondeu o reitor, que estás convidado desde já para duas bodas. 
                   Assim termina a linda e comovedora história das pupilas do senhor reitor, das mais populares que se devem à pena do singelo escritor português. 
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NOTAS EXPLICATIVAS 
Júlio Diniz, na verdade é Gomes Coelho que escrevia sob este pseudônimo.  Ele foi o romancista característico da vida provinciana portuguesa. Ninguém exprimiu melhor o sentimento da paisagem do seu pais, o aspecto insinuante dos seus campos e das suas aldeias. Nas suas expressões pode-se perceber nitidamente sua paixão pela vida interiorana de Portugal. Entre os romances que escreveu, o mais popular, e aquele em que melhor se patenteiam estas qualidades, é o das "Pupilas do Senhor Reitor", aqui resumida de forma pedagógica. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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terça-feira, 24 de setembro de 2013

OTELO, O MOURO DE VENEZA - Por Shakespeare


OTELO, O MOURO DE VENEZA 
 Por Shakespeare 
                 Veneza, ainda que hoje em dia seja apenas uma das mais lindas cidades da Itália, foi antes a capital de uma grande república, que enviava embaixadores às mais poderosas nações do mundo e exercia o seu domínio sobre muitas outras cidades; os seus inúmeros navios levavam o comércio veneziano a longínquos países e os seus soldados e marinheiros conquistavam terras em diversos pontos, onde em breve floresciam brilhantes e prósperas colônias. Naqueles tempos de grandeza e poderio, um mouro do Norte da África,chamado Otelo, homem grande, forte e proporcionado, de pele bronzeada, tornara-se tão célebre pelo seu talento e bravura, que Veneza o fizera general do seu exército. Tinha um espírito elevado e cheio de ilustração, uma rara eloquência, e era tão hábil, que apesar de sua cor escura, e numa época cheia de preconceitos, lhe confiaram o governo da ilha de Chipre que pertencia então à república veneziana. 
                  Teve Otelo a espantosa sorte de prender o coração de uma das mais formosas e ilustres senhoras de Veneza, Desdêmona, filha de Brabancio, senador e membro do governo. Entre tantos pretendentes ricos, poderosos e nobres que aspiravam a sua mão, Desdêmona escolheu Otelo. apesar da sua cor. Mas Desdêmona, que era uma senhora de grande coração e esclarecida inteligência, deixou-se encantar pela nobre alma e brilhante eloquência do destemido guerreiro. A sua maior delícia era escutar durante horas, as emocionantes narrativas da batalhas em que ele tomara parte, dos lances arriscadíssimos em que se encontrara, dos costumes e aspectos das terrar que visitara e das estranhas aventuras que o destino lhe proporcionara na terra e no mar. 
                    Brabancio,  o pai de Desdêmona, ignorava a paixão da filha; e ela ocultava aquele amor no fundo do seu coração porque bem sabia que o pai nunca consentiria no seu casamento com Otelo. 
                    Uma noite foram dois homens acordar Brabãncio e dizer-lhe que Desdêmona fugira para casar com o governador de Chipre.  Um daqueles homens  era Yago, que servia Otelo havia muito tempo na qualidade de oficial e que o odiava desde que o general linha feito de Cássio seu ajudante, preferindo-o a Yago, que esperava ser o escolhido para aquele cobiçado lugar. Yago era astuto, hipócrita, rancoroso e capaz de vilanias; Cássio, pelo contrário, era franco e leal, mas muito confiante e de gênio fraco. 
                    A cólera de Brabancio, ao saber a terrível notícia, foi medonha. Dirigiu-se imediatamente ao doge de Veneza e aos senadores, queixando-se do procedimento de Otelo e pedindo contra ele os maiores castigos, estes,ao princípio, mostraram-se favoráveis ao pai de Desdêmona e prometeram´lhe apoio. Mas Otelo, chamado á presença deles para responder pelo seu ato, fê-lo com tal brilho e nobreza que soube ganhar para a sua causa o doge e os senadores, que mais depressa ainda concederam o perdão, quando Desdêmona, cheia de firmeza, modéstia e dignidade, lhes declarou que amava Otelo com todas as forças do seu coração e tinha orgulho em ser sua esposa. 
                    Naquela mesma noite a dedicação de Otelo pela pátria a qual tão bem servira sempre, foi novamente posta à prova; avisaram-no que a ilha de Chipre, da qual era governador, se encontrava em perigo, ameaçada pelos turcos. 
                    O valente guerreiro partiu logo, deixando a sua esposa confiada aos cuidados do "honrado Yago", pois Otelo continuava a confiar na lealdade  deste homem; e Emília, mulher de Yago, foi chamada para servir de companheira a Desdêmona. Cássio partiu num segundo navio e Desdêmona num terceiro. 
                     Cássio foi o primeiro a chegar  Chipre, tendo perdido de vista o navio de Otelo, durante uma tempestade;  e Yago, que, com sua mulher e Desdêmona, tivera uma viagem mais rápida e feliz, alcançou a ilha antes da chegada do governador. O ódio de Yago e a sua inveja contra Cássio manifestaram-se imediatamente, e o seu cérebro malicioso e astuto principiou a forjar o laço pelo qual tencionava perder o ajudante, a quem Desdêmona tratava com mais confiança e simpatia do que ao hipócrita Yago. 
                   Quando Otelo chegou, pouco depois de Desdêmona, teve a alegria de ser informado de que a esquadra turca fora destroçada pelo mesmo temporal que estivera prestes a afundar o seu seu próprio navio, pois assim, livre dos cuidados de guerra, teria mais tempo para se dedicar à sua adorada Desdêmona. Na noite da sua chegada, ordenou o mouro a Cássio que cuidasse de manter a ordem no castelo e que procurasse evitar por todos os meios qualquer distúrbio entre os soldados. 
                   Entretanto o mesquinho Yago ia urdindo a sua trama. Convidando Cássio para beber com ele, tanto fez e de tal modo se portou que conseguiu embriagá-lo, e, metendo-o depois numa rixa, o infeliz Cássio, completamente ébrio, desafiou e feriu Montana, o governador d Ilha, que Otelo justamente vinha substituir. Chegou este ao lugar da rixa, e, pedindo explicações do que acabava de de se passar, Yago contou-lhe hipocritamente os acontecimentos, fingindo querer desculpar Cássio. Otelo ouviu-o com atenção, e chamando Cássio disse-lhe com tristeza: 
                  - Cássio, continuo a estimar-te, mas desta hora em diante, deixas de ser meu ajudante. 
                  E entregou  Yago a guarda do castelo. Assim teve bom resultado a primeira parte do seu negro plano de traição. Mas faltava o pior.
                  O pobre Cássio recorreu a Desdêmona para que intercedesse por ele junto d seu marido. Fê-lo a boa Desdêmona; mas Yago conseguiu, como um grande tratante que era, fazer pensar a Otelo que, se ela intercedia a favor de Cássio era porque se enamorara dele. Destilara com tanta hipocrisia e cuidado o veneno da dúvida no espírito de Otelo, que por fim o mouro começou a perder a fé imensa que tinha na sua esposa e tornou-se quase doido de ciumes.  O destino favoreceu os perversos planos de Yago. 
                  Antes do casamento, dera Otelo a Desdêmona um lenço muito rico, ao qual atribuía certos podres mágicos; o de tornar a sua dona amada e amável e o de a tornar odiosa se o perdesse. Yago instigou Emília, sua mulher, para que roubasse a Desdêmona este lenço.
                  Um dia, estando Otelo triste e atormentado com aquelas dúvidas que agora lhe não davam descanso,  queixou-se de dores de cabeça. Desdêmona ofereceu-lhe o lenço, mas ela atirou-o ao chão, dizendo que era pequeno demais. Emília apanhou-o prontamente e logo o deu a Yago, que o levou dissimuladamente para a casa de Cássio, onde o deixou cair. Cássio, que não conhecia aquele lenço, pensou que uma sua namorada o tivesse perdido e Yago arranjou as coisas de maneira que ele lhe mostrasse o lenço num certo quarto do castelo onde Otelo se escondera, para verificar se era  o de Desdêmona, e ter assim a prova  de que ela dera a Cássio aquela prenda oferecida pelo marido e que devia ter em tanta estimação. 
                   Convenceu-se então que Desdêmona  já não o amava, e, louco de ciumes e de dor, resolveu-se a matá-la. Entrou de noite no quarto de  Desdêmona, onde a encontrou adormecida no seu leito. Contemplou-a por um momento, e achou-a tão linda que se inclinou e beijou-a. Este beijo despertou-a e, em resposta às perguntas que ela lhe fazia ao vê-lo tão zangado e sem suspeitar a causa do seu desgosto, disse-lhe ele que fizesse as suas orações encomendando a alma a Deus, pois ia morrer, porque ele bem conhecia o seu amor por Cássio. Em vão a infeliz Desdêmona protestou a sua inocência e lhe assegurou com a expressão mais pura e sincera da verdade o seu profundo amor. Otelo, enfurecido pelo ciúme, cobriu-a com a roupa da cama e estrangulou-a. 
                   Não estava porém ainda morta quando a porta do quarto se abriu e Emília, que ouvira o ruído da luta, entrou precipitadamente e contou a Otelo todas as mentiras e intrigas  de Yago, exclamando que o mouro enganado por aquele tratante, tinha assassinado uma santa, cujas últimas palavras tinham sido de expressão do seu profundo amor pelo marido. 
                   Nesse momento entrou Yago e, vendo-se denunciado por sua mulher, apunhalou-a cheio de raiva e quis fugir em seguida; porém, agarrado pelos servidores de Otelo, trouxeram-no estes à presença de seu amo que, cheio de furor, o feriu  de morte. 
                   Compreendendo, no meio da sua terrível dor, quanto fora imbecil fiando-se numa tão mesquinha e torpe criatura como era Yago, a ponto de desconfiar  de uma esposa tão fiel, dedicada e boa, Otelo, desesperado, apunhalou-se, e, caindo sobre o corpo da inocente e linda  Desdêmona, exclamou, já nas ânsias da agonia:
                   - Oh! minha Desdêmona! Antes de te matar beijei-te; o que havia eu fazer depois, senão matar-me também e morrer abraçado a ti!

NOTAS SOBRE AS OBRAS DE SHAKESPEARE 
A maioria dos enredos das comédias e tragédias de Shakespeare já se encontravam em narrativas que ele não tinha inventado. Muito antes do grande poeta os empregar nas suas obras dramáticas, muitos desses enredos já eram populares na Europa. No entanto, estariam agora e para sempre esquecidos se ele não os tivesse repetido por intermédio das personagens imortais criadas pelo seu gênio e com sua linguagem maravilhosa. Shakespeare escreveu tragédias e comédias, e foi igualmente célebre em ambos os gêneros. 
Pesquisa, resumo e postagem 
Nicéas Romeo Zanchett 
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terça-feira, 17 de setembro de 2013

A MORTE DO LOBO - Por Camilo Castelo Branco


A MORTE DO LOBO 
 Por Camilo Castelo Branco 
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                Padre Justino entrava e saia de noite com resguardo exemplar. Acautelava-se em mais de um sentido. Ia com grande fé no preceito do santo e num clavinaço de dois canos, por causa dos lobos que são os policiais importunos aos vagabundos noturnos daqueles sítios. 
                Uma noite de Novembro caia neve, e os aspectos do céu profundamente frio tinham umas estrelas trêmulas, lucilantes, e um luar álgido que dava às concavidades nevadas a claridade nítida duns lagos de prata fundida. O Padre vestia polainas de saragoça assertoadas, tamancos ferrados e suspensos nas fortes presilhas das polainas, jaqueta de peles e uma carapuça alentejana escarlate, que lha abafava as orelhas. debaixo da lapela da véstia resguardava a escorva da clavina, e caminhava curvado com as mãos nas algibeiras e os olhos vigilantes nas gargantas dos serros. Uivos longínquos de lobo ouviam-se e punham-lhe vibrações na espinha,e um terror grande naquela imensa corda de serras, onde ele, àquela hora, se considerava o único ente exposto a ser comido pelas feras esfomeadas. Pulava-lhe o coração. Ao trepar a um outeiro, entaliscado de rochedos que pareciam resvalar de encontro a ele, ouviu o uivo ali perto, para lá da espinha do serro.  Tirou a clavina do sovaco, e lívido, com a sensação estranha do figado despegado, meteu o dedo tremente, automático no gatilho. Fez um ato de contrição; provava quanto as religiões são importantes, urgentes, nas crises, nos conflitos sérios do homem com o lobo. esperou. A fera assomara na lomba do outeiro, recortando-se esbatida no horizonte branco com uma negrura imóvel, sinistra; parecia um bronze, um emblema de sepulcro. Ela quedou-se por largo espaço num aspecto de admiração, de surpresa. Depois, descaiu sobre as patas traseiras, com ares contemplativos, de uma pacatez fleugmática. Mediam trinta passos entre a fera e o frade. Estava ao alcance de bala o lobo; mas o frade, caçador astuto, manhoso, receava perdem um dos tiros. Pôs-lhe a pontaria com um gesto de espalhafato; dava gritos como quem açula cães; "Boca! pega! cerca! Ai vai lobo!" Ecos respondiam; e a fera, menos versada na física dos sons reflexos, olhava crespa, espavorida, para o lado em que repercutiam os brados. Ergueu-se, e desceu mui de passo, com uns vagares irônicos, com a cauda de rojo e o dorso erriçado, a ladeira da colina. O padre via-a negrejar na linha flexuosa do declive. Pensou retroceder; mas o lugarejo de Felícia estava mais perto que a sua aldeia, e para aquele lado latiam cães de um faro que adivinha o lobo antes de lhe ouvir o uivo, e o fariscavam pela inquietação das rezes dos currais. Trepou afoito ao teso do outeiro; ganhara ânimo; bebera uns tragos de aguardente de uma cabana atada com o polvorinho no córrego. Sentiu-se capaz de afrontar o rebelde, se ele o não respeitasse como rei da criação, segundo afirmativas de teólogos que nunca viram lobo. Do topo olhou para baixo; não o avistou. Carcavava-se um alagar emaranhado de bravio espesso onde se embrenhara. Estugando o passo, ganhou uma clã ladeada de extensas leiras de feno alvejantes como um estendal de lençóis; e quando olhava para trás receoso viu a alimária, a grandes passos, com a cabeça alta atravessar a leira da esquerda, parecendo querer cortar-lhe o passo na extrema do caminho que entestava com a aldeia.  O padre agachou-se, coseu-se com o valo das urzes e giestas que formavam o tapume das terras cultivadas, e muito derreado, arquejando com o dedo no gatilho, e a fecharia rente da barba, caminhou paralelo com o lobo que o farejava de focinho  anelante e as orelhas fitas; e assim que a fera passou de perfil em frente ao tapigo, o rei da criação, que o era pelo direito do bacamarte, despediu-lhe a primeira bala com a destra pontaria de quem havia já matado águias com zagalotes. O lobo, varado pela espádua até o coração, decaiu sobre um dos quadris, escabujou em roncos frementes, espargindo flocos de neve, ergueu-se ainda interiçado numa grande agonia, e morreu. 
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BREVE BIOGRAFIA 
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco, nasceu a 16 de Março de 1825 em Portugal. Foi escritor, romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta tradutor. Foi o primeiro Visconde de Correia Botelho. Sua obras principais foram Amor e Perdição e a Morgada de Romaris. Em Portugal foi filmado sua obra Mistérios de Lisboa. Faleceu em 01 de Julho de 1890. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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sábado, 27 de julho de 2013

OS CONTOS DE VICTOR HUGO


OS CONTOS DE VICTOR HUGO 
Nicéas Romeo Zanchett 
A BOA PULGA E O MAU REI 
                 O grande poeta francês Victor Hugo tinha um imensa afeição pelas crianças. Uma de suas obras mais notáveis foi "A arte de ser avô"; é uma prova de amor pela netinha Joanna, uma simpática menina, muito esperta, de quem o famoso avô era um humilde escravo. 
                  Em certa ocasião um senador contou que foi até sua casa para consultá-lo; chegando lá encontrou o poeta andando de quatro pelo quarto, servindo de cavalinho para os netos. O político estranhou, mas Victor foi logo dizendo: - "eu sou mesmo um escravo de meus netos." 
                  Sua neta Joanna sempre pedia que lhe contasse histórias. 
                  - Vovô, sente aqui e nos conte uma história. 
                  - É muito difícil inventar histórias, replicou o avô. 
                  - Não para ti, disse Joanna, acariciando-o. Escreves muitas histórias, mas quero que nos conte uma que ainda não esteja nos teus livros, avozinho. 
                  Os netos Jorge e Joanna sentaram-se aos pés do avô  e ele começou a narrar  o maravilhoso conto, "a boa pulga e o mau rei". 
                                                     A BOA PULGA E O MAU REI 
                   Era uma vez um rei muito mau que maltratava os seus súditos, mas estes não podiam destroná-lo porque possuía um grande exército para sua defesa. 
                   Todas as manhãs se levantava  com humor pior do que o da noite anterior, até que isso chegou aos ouvidos duma pulga muito amável e de muito bons sentimentos. Nem todas as pulgas são assim, mas aquela tinha sido muito bem educada; ela só mordia as pessoas quando tinha muita fome, e mesmo assim tinha todo o cuidado para não lhe fazer mal. 
                    "Vai ser difícil fazer este rei entrar no bom caminho", disse consigo mesma a pulga; "contudo, vou tentar". 
                    Naquela noite, quando o rei começou a conciliar tranquilamente o sono, sentiu qualquer coisa como uma picada de alfinete. 
                    - Oh! o que é isto? - gritou o rei. 
                    - Uma pulga que quer castigá-lo. 
                    - Uma pulga? Vamos ver. Espera um pouco. 
                     E levantando-se furioso da cama, o rei sacudiu lençóis e cobertores, mas não pode encontrar a pulga, pela simples razão que que ela havia se escondido na barba do monarca. 
                     Pensando tê-la afugentado, o rei tornou a deitar-se, mas tão logo deitou a cabeça no travesseiro, a pulga deu um salto e o mordeu de novo.
                     - Como se atreve a morder-me outra vez abominável inseto?, exclamou. Não tem mais do que o tamanho de um grão de areia e atacas o mais poderoso rei da terra? 
                     A pulga, sem se incomodar  sequer o respondeu e continuou a mordê-lo . Durante toda a noite não pode o rei fechar os olhos, e no dia seguinte levantou-se de péssimo humor. Mandou fazer uma limpeza extraordinária e vinte sábios, armados com potentíssimos microscópios, examinaram cuidadosamente o quarto e tudo o que nele entrava. Mas não acharam a pulga, porque ela tinha se escondido de baixo da dobra da roupa que o rei vestia. Naquela noite o monarca, precisando de descanso, deitou-se muito cedo. 
                     - O que é isso, gritou, ao sentir uma terrível picada.
                     - A pulga. 
                     - O que queres? 
                     - Que me obedeças e faças feliz o teu povo. 
                     - Onde estão os meus soldados? Onde estão os meus generais, os meus ministros? gritou o rei. 
                     Todos entraram rapidamente no aposento real. Fizeram a cama em pedaços, rasgaram o papel das paredes, arrancaram o piso, e, diante de tudo isto, a pulga estava muito bem escondidinha na cabeleira do rei. Dirigiu-se este para outro aposento, no qual tratou de dormir, mas a pulga deu outro salto, começou a mordê-lo e não o deixou descansar em  toda a noite. No dia seguinte o rei, furioso, fez publicar um edital contra as pulgas, no qual ordenava a seu povo que exterminasse a todas com a maior brevidade possível. Mas nem assim se livrou do pequenino inseto, que o perseguia incessantemente. O seu próprio corpo ficou manchado dos beliscões e pancadas que em si mesma dava nos esforços vãos que fazia para afastar a sua implacável inimiga. Depois de passar noites sem dormir, começou a ficar fraco e pálido, e com certeza teria morrido, se finalmente não tivesse decidido obedecer à pulga. 
                    - Entrego-me, disse em tom lastimoso o grande monarca, quando a pulga tornou a mordê-lo. 
                    - Farei tudo o que quiseres. Fala. 
                    - Deve fazer feliz o teu povo, disse a pulga. 
                    - Que hei de fazer para conseguir?, respondeu o rei. 
                    - Tens que abandonar imediatamente este país. 
                    - Posso levar comigo ao menos uma parte dos meus tesouros?
                    - Não!. exclamou a pulga. 
                    Mas, não querendo ser demasiadamente severa, a pulga permitiu ao malvado rei encher os bolso de ouro antes de se por a caminho. Então o povo constituiu-se em república, governou-se a si mesmo e chegou a ser feliz. 
                    Tanto Joanna como Jorge divertiram-se muito com este alegre conto, porque o vovozinho, imitando o implacável rei, atormentado pela boa pulga, revolvia-se e batia-se com tão cômicos movimentos  que as crianças quase morriam de rir. 
                     Satisfeito com o efeito produzido, Victor Hugo ensinou-lhes o maravilhoso conto que se segue.

                                                 O CÃO FIEL E O CRUEL MENINO
                     Era uma vez um cão muito bom, de cujo nome não consigo recordar-me; só sei que era um cão excelente, em toda a extensão da palavra; teria dado qualquer coisa para ser seu amigo. Por desgraça era muito feio e além disso quase nunca se lavava; mas a culpa era do dono, um mocinho rebelde que costumava maltratá-lo. 
                     Um dia, este perverso mocinho foi para aborda dum lago, bastante profundo, para fazer uma brincadeira que certamente conhecem. O mocinho tinha um punhado de pedras e atirava-as à superfície do lago, procurando que tocassem na água, saltando três ou quatro vezes. O cão estava sentado à distância, observando-o.  De repente o mocinho escorregou pela borda muscosa do lago e caiu na água. Já estava quase a afogar-se, quando o animal, saltando atras  dele, agarrou-o pela roupa e o salvou, conduzindo-o para terra. Mas aquele perverso, ficou zangado porque o cão, ao tirá-lo do lago, tinha lhe rasgado um pouco a roupa; em seguida atirou o cãozinho novamente à água em busca do seu chapéu, e enquanto ele nadava começou a atirar-lhe pedras, e por pouco não fez com que o pobre animal se afogasse. 
                     Um lobo faminto e feroz viu o que acabava de acontece, e, imaginando que o pobre cão ficaria alegre vendo-se livre dum dono tão mau e ingrato, aproximou-se, sem fazer barulho, do cão e murmurou-lhe o ouvido: 
                     - Deixa que eu vou devorá-lo.
                     Mas o cão fingiu ser surdo daquele ouvido, e o lobo, já cansado de falar, atirou-se ao mocinho. O fiel cão, porém, arremeteu-se contra o lobo, e depois de encarniçada luta, conseguiu afugentá-lo. Entretanto o mau dono tinha se escondido atras de uma árvore e armara-se com um pau. O bom animal correu para seu dono, alegríssimo  pela vitória, mas o mocinho, com voz irada, exclamou: 
                    - Para trás, bicho feio! Por que me amedrontaste lutando daquela maneira com aquele horrível animal? Bruto, brigão!
                    Mal acabou de dizer estas palavras, desatou a dar pauladas  no infeliz animal e acabou por expulsá-lo a pedradas. 
                    Mas o pobre cão continuou a seguir fielmente o seu malvado dono, que, sem nunca se cansar de cometer más ações, entrou num pomar para roubar maçãs. Bem sabia que o dono do pomar era um homem que não tinha contemplação alguma com ladrões; mas imaginava que naquela ocasião estaria o dono ausente, talvez no mercado.  Começou a apanhar maçãs e a atirar ao pobre cão as que encontrava verdes.  De repente apareceu o homem, e, desesperado, foi até ele armado com uma espingarda. Apontou-lhe com raiva, e disse-lhe: 
                   - Ou me paga imediatamente as maçãs ou disparo. 
                   O perverso mocinho não tinha nem uma miserável moeda nos bolsos. Vendo-se perdido, começou a gritar: 
                   - Cachorro, cachorro, venha até mim! 
                   Os cães não podem trepar em árvores, mas aquele podia. Saltou para o tronco como se fosse de borracha, e segurando-se aos ramos com os dentes conseguiu chegar ao pé do dono protegendo-o com o próprio corpo, precisamente no momento em que o dono do pomar disparava a arma. 
                    A bala penetrou o corpo do bravo e nobre animal. O pobrezinho voltou seus olhos moribundos para o mocinho, como implorando auxílio, mas este já ia muito longe, correndo como bom ladrão que era. E assim morreu o fiel cão, vitima de sua inquebrantável lealdade. 
                    - O que foi feito desse menino tão malvado? perguntou Joanna, nervosa de indignação ao ouvir contar os maus tratos que o cãozinho sofrera. 
                    - Continuou a ser mau, respondeu o avô, e pagou muito caro, porque ninguém nunca o estimou. 
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Essas pequenas e geniais histórias que Victor Hugo contava a seus netos, mais tarde passaram a fazer parte das suas publicações, e assim chegaram até nós.
Nicéas Romeo Zanchett 
LEIA TAMBÉM >>> CONTOS E FÁBULAS DO ROMEO

sábado, 20 de julho de 2013

ROBINSON CRUSOÉ - Daniel Defoe



No princípio do século XVIII, um inglês compôs uma narrativa  interessantíssima, cheia de curiosos e variados incidentes, a qual durante muito tempo, foi tida como verdadeira. O autor tinha descoberto a arte de contar acontecimentos fictícios, de tal forma que o leitor os julgasse reais. Chamava-se Daniel Defoe; e o seu livro: "Robinson Crusoé". É, sem dúvida, uma grande obra de imaginação, ainda que a ideia em si fosse sugerida a Defoe pelas aventuras verdadeiras de um marinheiro chamado Alexandre Selkirk, que naufragara na ilha de João Fernandes. 
Nicéas Romeo Zanchett 
ROBINSON CRUSOÉ - Daniel Defoe 
Resumo de Nicéas Romeo Zanchett 
                      Robinson Crusoé começa a sua história contando-nos que nasceu em Nova York no ano de 1662 e que era o terceiro filho d'uma honrada família. O pai desejava que se tornasse advogado, mas ele só pensava no mar. 
                      O autor dos seus dias, homem grave e sisudo, não deixava de lhe dar sãos e excelentes conselhos,dizendo-lhe que há homens a quem a fortuna volta as costas ou que conseguem alcançá-la à custa de grandes perigos, sendo, portanto, melhor contentar-se com uma profissão mediana que, no seu entender, era a posição mais invejável do mundo. 
                      Mas, passados alguns dias, diz Robinson Crusoé, "esqueci tudo isso e, ainda não decorrera um ano, quando parti de Hull, não me importando com o que o meus pais pensassem e, sem implorar a bênção  do céu nem a paterna, embarquei, no dia 1 de Setembro de 1651, a bordo d'um navio que partia para Londres". 
                     O navio naufragou, mas os tripulantes  conseguiram chegar à terra graças a um bote que foi mandado de um farol em seu auxílio.  Desembarcaram perto de Cromer e tomaram o caminho de Yarmouth, onde deram dinheiro a Crusoé para ele regressar a Hull ou continuar a sua viagem até Londres. Sem se despedir sequer do capitão, que se lamentava de ter levado no seu navio uma espécie de Jonas personificado no nosso Robinson, este desistiu completamente de qualquer ideia de voltar para traz, e caminhou-se para Londres, onde tomou passagem a bordo de um navio que partia para a costa da Africa e cujo capitão, que simpatizou com ele, lhe disse o que deveria comprar para fazer negócios; e ele, pelo seu lado, tinha aprendido alguma coisa da arte de navegação. 
                      "Esta viagem, a única viagem feliz entre minhas aventuras, converteu-me em marinheiro e negociante; regressei a Londres com cinco libras e duas onças (uns dois quilos e meio) de ouro em pó, que vendi por 300 libras esterlinas, e com esta quantia dispus-me a realizar as aspirações que deveriam conduzir-me à desgraça."
                      Conta que destinou 100 libras ao empreendimento de uma nova aventura e entregou à guarda e cuidado da mulher do seu amigo, o capitão, as 200 libras  restantes; depois embarcou no mesmo navio, agora comandado pelo primeiro piloto.  Uma manhã, navegando entre as ilhas Canárias, foram surpreendidos por um corsário mouro de Salé, e, depois de um rude combate, foram todos aprisionados e conduzidos àquele porto. 
                     Enquanto os seus companheiros eram levados à corte do imperador, Robinson Crusoé ficou em poder do capitão pirata que fez dele seu escravo. 
                     " Quando o meu novo amo embarcava", diz ele,"deixava-me em terra para eu lhe vigiar um jardinzinho e o trabalho dos escravos; e quando vinha para casa, mandava-me para o seu camarote a fim de vigiar o navio."
                     A FUGA DE CRUSOÉ - Crusoé foge do poder do pirata e empreende uma viagem.
                     Uma vez o pirata comprou uma lancha de um navio inglês para nela se dedicar a várias excursões; e este foi o primeiro dos acontecimentos que facilitaram a fuga de Crusoé nas circunstâncias que ele nos refere nos seguintes termos: 
                      "Aconteceu que o pirata se dispôs a embarcar na lancha com dois ou três mouro de categoria e enviou para bordo, na véspera, uma grande quantidade de provisões, bem maior do que era costume, ordenando-me que levasse eu três mosquetes com pólvora e balas porque projetava um encontro a par da pescaria. Na manhã, o meu amo chegou a bordo sozinho e disse-me que os convidados  tinham desistido da expedição e mandou-me então ir à pesca com um parente e um mocinho a fim de trazermos peixe para a ceia que ia oferecer aos seus amigos. "
                      "Assaltaram-me naquele instante as minhas primeira ideias de libertação; encontrava-me com uma embarcação ás minhas ordens aprovisionada pelo meu amo, não para uma partida de pesca, mas para uma viagem. Abastecido de tudo que me era preciso, saí do porto para pescar. A certa altura consegui desembarcar-me do mouro, atirando-o o mar, e fiquei só com o mocinho, que se chamava Xury. " 
                       "Cinco dias fui navegando até que  me aventurei a saltar em terra. Deitei a âncora na embocadura d'um rio; não vi nem desejava ver ninguém; o que eu queria era arranjar água para beber."
                       "Fomos cada um para o seu lado até que Xury veio dizer-me que tinha encontrado água boa e que não vira um único selvagem. Agora escusávamos de nos inquietar; descobrira num outeirinho perto perto da enseada um manancial de água fresca que brotava durante a maré baixa; enchemos com ela os nossos cântaros, fizemos honra ao jantar e preparamo-nos para seguir viagem." 
                       Depois de um encontro com uma tribo de negros pacíficos, Crusoé foi costeando até perto de cabo Verde, onde um navio português em viagem para o Brasil o recolheu. O capitão mostrou-se  animado e dos mais amistosos sentimentos, além de negar-se a aceitar qualquer pagamento, mas pediu a Crusoé que lhe vendesse o mocinho e a lancha. A princípio Crusoé não gostou da ideia de vender Xury, mas o capitão prometeu-lhe que lhe daria a liberdade e ele, no final de dez anos, estivesse convertido à fé cristã, e como Crusoé bem sabia era isso mesmo que iria acontecer, e concluiu o negócio com o português. 
                      CRUSOÉ NO BRASIL - Faz fortuna como plantador de fumo. 
                      Depois de uma viagem feliz, chegou ao Brasil onde se associou com um plantador de assucar  Escreveu á sua amiga, a esposa do capitão inglês, depositária dos seus fundos, pedindo-lhe que empregasse a metade  da soma que tinha em seu poder na compra de gêneros ingleses consignados em Lisboa, onde o capitão os tomaria na próxima viagem ao Brasil. 
                      Cedidos aqueles gêneros por bom preço, Crusoé comprou  uma plantação de fumo e, em quatro anos, acumulou grandes riquezas, apear de não se sentir satisfeito, pois ambicionava muito mais. 
                     Falou aos seus companheiros plantadores e aos negociantes da Bahia da sua viagem a África; explicou-lhes como, a troco de algumas bagatelas, se podia obter, não só ouro em pó, marfim etc., como também escravos para o serviço nas plantações.  E, um dia, três fazendeiros propuseram-lhe pôr um navio às suas ordens para ele realizar o negócio que queria; Robinson aceitou, e, para tal fim, embarcou na qualidade de feitor ou zelador das mercadorias. 
                    A VIAGEM À ÁFRICA - preparou-se para a arriscada viagem. 
                    Sem coragem de resistir ao oferecimento, mas, por outro lado, os perigos a que se expunharia dirigindo-se para a costa da África. Crusoé fez o seu testamento, para garantir a propriedade das suas plantações e outros interesses. 
                   "Em suma", escreve ele, "tomei todas as precauções possíveis para salvar a minha plantação e os objetos que me pertenciam, pondo em tudo a maior prudência, ainda que mais pesaram no meu ânimo os impulsos do capricho e da fantasia do que os da razão. 
                    O NAUFRÁGIO numa ilha deserta. 
                    O navio em que Robinson e seus companheiros tinham largado do Brasil, teve de sofrer, doze dias depois, os efeitos de um violentíssimo furação que lhe causou grandes avarias. Um dos tripulantes morreu doido e um marinheiro e um grumete foram arrebatados pelas ondas tempestuosas. 
                    Resolveu que o navio tomasse o rumo das Índias Ocidentais, pelas más condições em que se encontrava, mas sobreveio outro furioso  temporal e, durante doze dias, o barco andou sobre o mar revolto, à mercê da ventania. 
                    Abandonados assim á fúria dos elementos climáticos desencadeados, uns suspiravam por descobrir terra, enquanto outros, encerrados nos seus camarotes, esperavam o momento em que a embarcação encalhasse em algum banco de areia ou que as ondas os espatifassem. Onze homens embarcaram numa cano, entregando-se à vontade de Deus e à fúria do mar cada vez mais tempestuoso. Tendo navegado uma légua e meia, uma onda do tamanho de uma montanha caiu com tal furor sobre o bote, que o fez submergir nas águas, e os tripulantes foram tragados num instante pelo abismo. 
                   CRUSOÉ SALVA-SE 
                   "O mar arremessou-me à terra", diz Crusoé, "ou melhor, contra uma rocha sobre a qual fui cair sem sentidos. Felizmente voltei a mimantes da maré cheia; e chegando à terra pude contemplar com grande satisfação, do alto dos penhascos da costa, o perigo de que me tinha livrado, ficando em condições de voltar ao navio quando chegasse a hora da maré baixa. 
                    Encontrava-me, pois, são e salvo em terra; dei  graças a Deus por me ter salvo a vida de tão horrível transe, pois tudo fora questão de minutos, passados os quais não havia mas esperança alguma. É impossível exprimir os êxtases e transportes de quem se vê a salvo como eu me vi, depois de ter passado por tão tremendo perigo.  Fui andando ao longo da praia tocando-me e apalpando-me, para me convencer bem de que estava vivo; fazia mil gestos e movimentos para me certificar de que era o mesmo, e pensei na sorte dos meus camaradas, dos quais nem um só escapara. Nunca mais os ternei a ver; só, mais tarde, pude recolher três chapéus  uma gorra e uns sapatos que lhes pertenciam.  Lancei os meus olhos ao navio despedaçado que jazia ao longe. Como tinha Deus sido tão bom para mim, permitindo-me que alcançasse a costa?" 
                    A PRIMEIRA NOITE NA ILHA
                    No entanto não tardou muito tempo para que Crusoé viesse a perceber  as tristes condições a que se via reduzido;  estava encharcado até os ossos e não podia mudar o fato; não tinha nada para comer nem beber; não tinha consigo uma arma sequer; possuía apenas uma navalha, um cachimbo e um pouco de fumo. Ia se aproximando a noite e o único recurso que se lhe oferecia era um espesso bosque de abetos, cheio de perigos.
                    Antes de mais nada precisava comer e beber, e por esse motivo se internou pela ilha, tendo a sorte de encontrar um ribeiro de água fresca, com o qual se reanimou. Com isso e com o fumo que poderia iludir a fome, pouco depois, adormeceu.  Estava tão cansado que  só acordou quando já era dia claro. A tempestade havia se acalmado e o céu esta azul e claro. 
                    A VIDA NA ILHA - a construção da sua fortaleza. 
                    Quando Crusoé acordou em cima da árvore que trepara para passar a noite, viu que a embarcação naufragada tinha sido empurrada pelas ondas para perto da terra e se encontrava agora apenas a uma milha da praia. Pensou que poderia aproveitar daqueles destroços algumas coisas que lhe fossem de utilidade; saiu nadando e, valendo -se de umas cordas, conseguiu chegar a bordo, onde verificou que os seres vivos que lá havia eram um cão e dois gatos, que dai por diante  passaram a ser os seus únicos companheiros. 
                    RETIRANDO UTENSÍLIOS E PROVISÕES 
                    Como não havia tempo a perder, encheu as algibeiras com bolachas, construiu uma jangada, à qual ligou algumas arcas dos marinheiros, depois de as ter abarrotado de viveres, ferramentas e munições, e voltou para a terra. 
                    No dia seguinte voltou ao navio, construiu outra jangada e levou-a para a terra carregada. Durante onze dias foi repetindo aquelas visitas e assim acabou por levar para a terra quase tudo que havia a bordo. Dispondo-se a voltar mais uma vez, viu que o navio desaparecera. 
                    Então, reparando numa pequena explanada que havia no cimo d'uma rocha alta, donde se dominava uma grande extensão de mar, podendo portanto daquele lugar fazer qualquer sinal pedindo socorro a algum navio que passasse, resolveu  erguer ali a sua habitação feita com a vela do barco naufragado. 
                    Diante desta barraca traçou um semi-círculo duns vinte metros de diâmetro, cujas duas extremidades terminavam na rocha. Pela borda deste semi-círculo, cravou solidamente  na terra duas fila de rájidas estacas, a quinze centímetros uma da outra e de modo a ficarem com metro e meio de altura acima do solo. 
                    AS DEFESAS DA CABANA
                    Aguçou os estremos das estacas e encheu os intervalos entre elas  com grossos cabos trazidos do navio. Colocou outras estacas no interior, chegadas umas às outras, de 70 centímetros de altura, todas pontiagudas.  Era tão sólida esta obra de defesa que nenhum homem ou animal poderia atravessá-la. Não lhe deixou nenhuma abertura ou porta,e, para poder entrar e sair, arranjou uma pequena escada móvel que apoiava contra esta muralha ou retirava, conforme queria. 
                     Dentro deste cerco ou fortaleza construído com imenso trabalho, acumulou todas as suas riquezas, provisões e objetos diversos, armando pata tal fim duas barracas, uma mais pequena interior, outra maior, envolvendo a primeira; cobriu tudo com um grande encerado que encontrara a bordo. 
                     Observando que a rocha, na parte de traz, se apresentava ligeiramente escavada como se fosse a entrada duma gruta, e não era muito rígida, tratou de alargar e aprofundar aquela escavação e arranjou uma pequena gruta de suficiente tamanho para lhe servir de cozinha. Repartiu a pólvora por uma centena de sacos que colocou em pontos diferentes e afastados uns dos outros para, em caso de explosão, não perder toda a sua reserva.  
                      A fim de não perder a conta do tempo, gravou num poste largo as seguintes palavras: "Encontro-me neste sítio desde o dia 30 de Setembro de 1659." E fazendo com outra madeira e este poste uma espécie de cruz, plantou-a na praia. Nos braços deste poste, todos os dias ia traçando um risco, fazendo-os mais compridos de sete em sete, para marcar os domingos.
                     PRODUÇÃO DE PÃO
                     Entretanto averiguou que na ilha havia cabras, coelhos e gatos monteses, assim como aves silvestres, e foi guardando as peles dos animais que matava para comer. 
                     Terminada a obra da fortaleza, fabricou algumas cadeiras e uma mesa com madeira de certas árvores que  cortava para tal fim, servindo-se de um machado e alinhando-a depois com um enxó.  Mais tarde, depois de uma grande tempestade, apareceram na praia alguns restos do navio naufragado, e Crusoé aproveitou a ocasião para se aprovisionar de tábuas e de ferragens que mais tarde lhe seriam muito úteis. 
                    Um dia, antes da estação das chuvas, despejou e sacudiu uns sacos velhos que tinham servido, no navio, para transporte de cevada e outros cereais; e, depois das chuvas, observou que, no lugar onde os escondera, apareciam uma linguetas verdes que, crescendo, acabaram por produzir algumas espigas de cevada e arros. Crusoé colheu-as e semeou-as, e assim foi fazendo durante quatro anos, até que, ao cabo desse tempo, conseguiu colher bastante para semear e guardar quantidades de cereal suficientes para com eles ir fazer pão. 
                    Tomou então as precauções precisas que os coelhos e os pássaros não prejudicassem as suas sementeiras. 
                     Um dia um forte terremoto veio assustá-lo muito;  mas, felizmente, não lhe causou dano algum. Mais tarde caiu doente, restabelecendo-se achou grande consolação na Bíblia, que também trouxera do navio ; percorreu a ilha, e no outro lado descobriu um formoso vale, onde construiu um caramanchão. 
                     Num outro ponto da ilha viu muitas pombas rolinhas, lebres e galinhas selvagens. Apanhou um papagaio e ensinou-o a dizer o seu nome. Capturou uma boa quantidade de cabras e levou-as para o seu cercado, prevenindo-se assim contra a falta de alimentos, aproveitando-lhes o leite, que conservava em toscas vasilhas de barro que ele mesmo fabricara. 
                     CONSTRUINDO UMA CANOA COM VELA
                      Já estava na ilha a seis anos, quando resolveu construir uma canoa; com ela, tinha a intenção de dar a volta em toda a ilha. Fabricou sacos e roupas com peles de animais e também alguns cestos.  Eis como, com suas próprias palavras, descreve sua roupa: "Andava com um grande, alto e extraordinário barrete de pele de cabra, um estranho casaco também de pele de cabra que me chegava aos joelhos e umas calças e chinelas da mesma fazenda. Trazia um cinturão de pele seca de cabra, no qual levava um serrote e um pequeno machado, e numa outra correia pendurada ao ombro trazia dois bolsos, também da mesma pele, com pólvora e balas.  Caminhava com uma cesta às costas, o mosquete a tiracolo e, na mão, uma grande, feia e tosca sombrinha de pele de cabra para me resguardar do sol. Cortava com frequência a barba, mas cobria-me o lábio superior um comprido bigode à moda maometana." 
                      Quando se ocupava nas suas plantações, ou no tratamento dos seus animais, empreendia pequenas incursões na sua canoa ou passeava em torno da ilha; e assim tinha sempre o seu tempo ocupado. 
                      AS PEGADAS NA AREIA
                      Um dia, depois de ter vivido quinze anos na ilha, ficou Robinson Crusoé profundamente surpreendido ao ver na areia da praia, impressa, uma pegada de pé humano descalço. A impressão que tal descoberta lhe causou foi como se uma aparição surgisse diante dele, e desandou a correr na direção da sua fortaleza, nem mais nem menos do que se fosse perseguido. Cheio de medo, não conseguiu dormir  nessa noite; durante três dias e três noites não saiu do seu abrigo. 
                      Do outro lado da ilha, Crusoé sempre avistava uma estranha faixa escura no horizonte, que pensava ser de terra; deduziu que a pegada na areia poderia ser de algum selvagem que teria vindo até a ilha; isto obrigou-o a tomar medidas para sua segurança. 
                      Quando, algum tempo depois, descobriu numerosos crânios e osso humanos, restos de um festim de canibais, retirou-se rapidamente para sua fortaleza; sentiu-se feliz por ter construído seu abrigo naquele lugar, onde não apareciam selvagens. 
                      Numa certa manhã, quando já haviam se passado vinte e três anos, assustou-se ao ver um grupo de selvagens  naquele lado da ilha e, descendo até a praia, depois de os ver partir, deparou com os restos de um novo banquete  de canibais, o que o levou a redobrar de precauções para não ser descoberto. 
                       Meses depois, ali perto aconteceu outro naufrágio, e Robinson pode aprovisionar-se de várias coisas de que estava precisando. 
                      Dois anos depois tornou a ver outro bando de selvagens que traziam dois prisioneiros. Enquanto esquartejavam um deles, o outro conseguiu fugir e desandou a correr na direção de sua cabana. Foi perseguido por dois canibais, mas Crusoé o salvou; e desde então este selvagem passou a ser seu fiel servidor; e como isto aconteceu numa sexta-feira, deu-lhe o nome de Sexta Feira. O negro logo aprendeu muitas palavras inglesas, que lhe eram ensinadas e tornou-se um excelente e útil companheiro em todos os trabalhos e aventuras na ilha. 
                     Um dia Sesta Feira chegou correndo e muito sobressaltado. Chegara à ilha um novo bando de selvagens em três canoas, e o negro estava convencido de que vinham à sua procura. Crusoé tranquilizou-o o melhor que pode; armaram-se e saíram da fortaleza. 
                     O ENCONTRO COM MAIS COMPANHEIROS
                      Quando chegaram perto dos canibais, estes estavam devorando um dos prisioneiros, enquanto o outro cativo esperava estendido na areia.  Este cativo era um branco. Crusoé e Sexta Feira fizeram fogo contra o bando, matando vários e dispersando o restante. Enquanto Crusoé libertava o homem branco, Sexta feira descobrira mais um prisioneiro deitado no fundo de uma canoa; era seu pai, como depois se comprovou. A partir de então Crusoé já tinha três companheiros. 
                      Depois de libertado, o branco disse que era espanhol e pertencia à tripulação, composta de dezesseis homens, dum navio que naufragara, e que havia sido feito prisioneiro dos selvagens da tribo a que pertencia Sexta feira.  Disse que foram bem tratados pela tribo de Sexta feira, mas que houvera uma guerra com outra  tribo e os derrotados foram todos feitos prisioneiros e eles eram alguns desses.
                      Antes disso  acontecer, Crusoé já estava construindo outra canoa. Decidiu que esta canoa seria usada por Sexta feira e os outros dois para trazer os demais espanhóis para sua ilha.
                     Depois que partiram, apareceu um e deles desembarcaram uns poucos homens, perto da habitação de Crusoé. Traziam três prisioneiros. Ao escurecer, enquanto os homens estavam dormindo, Crusoé aproximou-se dos cativos e viu que eram oficiais do navio. Tinha havido uma revolta a bordo. Crusoé libertou os três homens e, depois de vários episódios muito interessantes, o capitão tomou novamente posse do seu navio, no qual, depois dos sobreviventes  da revolta serem abandonados na ilha, Crusoé embarcou com Sexta Feira, finalmente deixando a ilha,  no dia 19 de Dezembro de 1686, o mesmo dia do mês em que ele fugira de Salé. 
                   Neste navio, Crusoé chegou à Inglaterra no dia 11 de Junho de 1687, após uma ausência de 35 anos. 
                   Pouco depois foi a Lisboa, e ali soube, por cartas que recebeu do Brasil, que os seus negócios tinham sido tão bem dirigidos que estava rico. 
                   Voltando á Inglaterra, Crusoé casou e estabeleceu-se numa linda quinta em Bedfordshire. Mas o velho espírito de aventura novamente tomou posse dele e após a morte de sua mulher, partiu novamente para a sua ilha, transformada numa próspera colônia pelos sobreviventes espanholais. 
                   Por fim Crusoé despediu-se da colônia, indo aventurar-se na China e na Russia. Voltou a Londres em 10 de Janeiro de 1705.
                   "E então", diz ele, "resolvi preparar-me para uma viagem maior do que todas estas, tendo vivido uma existência infinitamente variada durante setenta e dois anos, e aprendido o bastante para conhecer o valor do repouso e a ventura de acabar os dias em paz." 
                   O LIVROS SOBRE CRUSOÉ
                   Na verdade, Daniel Defoe escreveu três livros sobre Crusoé, não só relatando sua vida, mas falando sobre seus pensamentos em várias coisas. 
                   Esta história que acabo de resumir é contada no primeiro e mais interessante destes livros. E este deve, por sua originalidade,  ser lido  por todos que gostam de aventuras e boa literatura. 
Nicéas Romeo Zanchett.