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domingo, 7 de setembro de 2014

O EROTISMO EM FERNANDO PESSOA

Por Nicéas Romeo Zanchett 

                 FERNANDO PESSOA, seguramente o mais polêmico poeta da língua portuguesa, seduz seus leitores ao entrelaçar em sua poesia misticismo e materialismo, emoção e razão, subjetivismo e objetivismo. 
                  Pessoa não era hétero nem homossexual, mas simplesmente nunca tivera um caso de amor verdadeiramente realizado. Isto explica porque comparava o amor à ilusão, ao sonho e o sexo a um acidente. 
" O amor é essencial;
 O sexo é só um acidente. 
Pode ser igual 
Ou diferente."
            Podemos observar que a sensualidade e o erotismo em Fernando Pessoa, manifesta-se de forma contida e velada - o erótico é intelectualizado a um nível de etéreo, de sonho, algo vago, evanescente quando não concebido como algo irrealizável, que o poeta se esquiva, foge por não ser capaz de envolver-se; por não querer sentir.
"Dorme o meu seio, 
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrigo vagar. 
Dorme no sonho de existir
 E na ilusão de amar." 
                 Se Camões foi o maior poeta do amor da língua portuguesa, seguramente Fernando Pessoa foi o maior poeta do desamor. Sua obra nos mostra uma incompetência psicológica para amar, para se entregar a alguém. Quando diz: "quero-te para o sonho, não para o amor", o poeta deixa bem claro oque pode sentir pela mulher amada. O amor é demasiadamente concreto para a sua frágil sensibilidade e sempre busca o inatingível. Mas, por outro lado, esse poeta de desejos vagos e impossíveis é capaz de assumir uma posição diante do amor, mostrando-se totalmente destemido , em oposição aos rígidos preconceitos da sua época. 
                Sua sensualidade se resolve em percepções transparentes, tênues, com interpretações do sonho e da realidade, num erotismo sutil e brando. Mas, como podemos ver, no poema abaixo ele  mostra seu desejo por uma mulher: 
"Da a surpresa de ser. 
É alta, de um louro escuro. 
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro. 
.
Seus seios altos parecem 
(Se ela estivesse deitada) 
Dois montinhos que amanhecem  
Sem ter que haver madrugada. 
.
E a mão de seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado. 
.
Apetece como um barco, 
Tem qualquer coisa de gomo. 
Meu Deus, quando é que eu embarco? 
Ó fome, quando é que eu como?"
.
                  Fernando Pessoa se utilizava de diversos heterônimos e, dessa forma, consegue assumir uma despersonalização, desdobrando-se em outros poetas, cada um com seu próprio estilo e sua própria visão de mundo. É uma marcante característica de sua criatividade só possível para alguém multitalentoso que talvez precise esconder-se atrás de um personagem para criar e expressar seus verdeiros sentimentos. Entre os muitos pseudônimos que utilizava temos Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Alvaro Campos; são nomes tão pessoais que realmente até parecem ser outras pessoas.  No seu processo de criação dos diversos heterônimos chega ao requinte de lhes atribuir até a data e local de nascimentos. Alberto Castro, segundo sua imaginação, nasceu em Lisboa no ano de 1889 e morreu em 1915; já o personagem Álvaro Campos nasceu em Tavira, no Algarves a 15 de outubro de 1890, precisamente a uma hora e trinta minutos da tarde; o seu imaginário Ricardo Reis nasceu no Porto e, segundo ele mesmo, não se recorda a data. Para dar mais vida aos seus personagens se dava ao trabalho de fazer o mapa astral de cada um. Ele dizia que "o poeta é um fingidor". 
                  O dilema razão "versus" emoção é uma constante em sua obra. O conflito assume, frequentemente, a forma dorida do sentimento que briga com o pensamento; do coração que não quer  querer, mas aceita e vai em frente; do amor que, apesar de muito querer, se fecha no próprio pensamento e não vai. Ele mesmo percebia esta dualidade quando dizia: "É como se o coração tivesse cérebro." - "Eu sou quem sou, que não sou meu coração."
                  No mundo da poesia  sempre devemos pensar num jogo de emoções com a palavra sempre buscando o sentido dela própria. No poeta o exercício de emoção é racional, cerebral e por isso é também melancólico; ele vê a efemeridade do prazer; vê a tristeza nas coisas alegres e morte onde há vida. Nesse mundo imaginário o toque do amor é inefável. 
 "Foi o desejo que sem corpo ou boca, 
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse."
                   Com o heterônimo Álvaro Campos, Pessoa expressa sua sexualidade mórbida, masoquista, homossexual, como nesta famosa passagem de Ode Triunfal:
" Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída. "
E da Ode Marítima
"Espanquem-me à bordo dos navios
Masoquismo através de maquinismos!"
                   Ainda em outro trecho da Ode Marítima pode-se facilmente perceber este lado erótico do poeta onde ele diz: 
"Ser meu corpo passivo a mulher de todas as mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!
Ser no meu ser subjugado, a fêmea que tem de ser deles!"
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                    Seu incontrolável desejo masoquista, além do mero prazer do sexo, fica bem evidenciado no seguinte trecho: 
"Ah, não sei que, não sei quanto queira eu ser de vós,
Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as vítimas
Ser-vos as vítimas - homens, mulheres, crianças, navios.
Ah, torturai-me para me currardes!
Minha carne - fazei dela o ar que vossos cutelos atravessam."
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                Na sua época, com tanta sinceridade, não podia ele se expressar senão através de seus heterônimos. O heterônimo de Álvaro Campos, de forma muitas vezes passiva, assume seu lado homossexual como se desejasse ser possuído. Em saudação a Walt Whitman, poeta homossexual, Campos diz-se "um dos teus", vestido com um "casaco exageradamente cintado" em elegância afeminada, igualando-se a Whitman a quem chama de 
" Grande pederasta roçando-te sobre a diversidade das coisas, 
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões."
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                  E ainda chama Whitman de "Rameira de todos os sistemas solares..."
                   Quando Campos beija o retrato do americano, sente que seus "beijos são mais quentes" e tem uma "ereção abstrata e indireta no fundo da alma". E sente: 
"Vontade...
De ser a cadela de todos os cães e eles não me bastam, 
...
De ser o esmagado, o deixado, o desolado, o acabado."
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                   O que ele realmente quer é um "gosto masoquista..." 
                    Whitman simboliza a androgenia, pois "Tua alma é um que são dois quando dois são um". 
                    Como Álvaro Campos ele diz: "Sentir tudo de todas as maneiras." e no Soneto suspira por "aquele rapazito louro / que me deu horas tão felizes". 
                    Com o heterônimo Alberto Caeiro o poeta mostra a sexualidade global. Mostra um panteísmo em que a amada é parte de um todo amorável e não um culto à sua personalidade: 
" Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim, 
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, 
Por tu me amares, amo-te do mesmo modo, mas mais". 
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O amor traz uma sensação de completude, de plenitude:
O amor é companhia,  
 Já não sei andar só pelos caminhos."
.
O amante prescinde da presença da amada, pois o amor internaliza e absorve o desejo:
"Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo
Eu gosto tanto dela que não sei como a desejar."
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                    Embora bem diferente, Caeiro se aproxima dos outros heterônimos quando mistura razão e emoção: 
"Amar é pensar 
E eu quase me esqueço de sentir, só em pensar nela."
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                   Com Ricardo Reis, Fernando Pessoa abraça o tema do - viva o presente - e ia mais longe com sua poesia erótica, falando do prazer no amor carnal com orgias requintadas: 
"Gozo sonhado é gozo, 
ainda que em sonho. 
Nós, o que nós supomos nós fazemos."
                  Com tanto erotismo, Reis é o mais refinado e versejado em Odes greco-romanas. Nele encontramos uma poesia profundamente erótica com refinamento pagão: 
"Bocas roxas de vinho, 
Testas branca sob rosas, 
Nus, brancos antebraços 
deixados sobre a mesa. 
.
Tal seja, Lídia, o quadro 
Em que fiquemos, mudos, 
... "
E com a sabedoria dos antigos, ele adverte: 
"Prazer, mas devagar, 
Lídia, que a sorte à queles não é grata
Que lhes das mãos arrancam. 
... 
Como um regato, mudos passageiros, 
Gozemos escondidos." 
                   Ricardo Reis é, talvez, o mais cerebral dos heterônimos de Fernando Pessoa. Com ele o poeta capricha na sintaxe e na busca de imitar o latim: 
"Como se cada beijo
Fora despedida, 
Minha Chloe, beijamo-nos amando." 
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"Cada dia sem gozo não foi teu, foi só durares nele. 
Quanto vivas sem que gozes, não vivas." 
                   Fernando pessoa chegou mesmo a declarar que, em sua poesia erótica em inglês, teria sido "obsceno". 
                   No poema Epithalamium, em grego, que representa o conceito romano do mundo sexual de forma bruta, Pessoa celebra, com muito requinte, a perda brutal e deliciosa da virgindade com momentos de sadomasoquismo.  Na estrofe XVIII, o poeta explicita o ato sexual: 

"lollo! eis que corre o suco da tesão do prazer
Através das malhas desses corpos
Que agora sofrem realmente por despir-se e empreender 
Sobre a carne um do outro
 A guerra que enche o ventre e põe leite nas 
Tetas que um homem deveras conquistou, 
A batalha lutada com tesão para juntar-se e se ajustar, 
E não para ferir ou agredir."
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                  Neste genial poema, Pessoa mostra o homem subjugando a mulher no ato sexual através de seu poder fálico. Ela submissa e derrotada, tem seu ventre preenchido pelo gozo de seu amado conquistador.

"Amo como ama o amor. 
Não conheço nenhuma outra razão para amar. 
Que queres que te diga, além de que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo? " 

BREVE BIOGRAFIA
                Fernando Antônio Nogueira Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português. Como poeta, expressou-se com heterônimos diversos e com múltiplas personalidades. Seu lado erótico e polêmico é o que mais despertou a curiosidade, provocando a maior parte dos estudos sobre sua vida e obra. Os três heterônimos mais conhecidos foram Alberto Caeiro, Álvaro Campos e Ricardo Reis. Justamente aqueles mais utilizados para expressar sua sexualidade. Nascido a 13 de Junho de 1888 e falecido em 30 de novembro de 1935, aos 46 anos de idade..
Nicéas Romeo Zanchett

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terça-feira, 2 de setembro de 2014

AS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Por Santo Agostinho
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Santo Agostinho, o maior dos doutores da Igreja latina, nasceu na África Setentrional a 13 de Novembro de 354 d.Cristo e morreu  em Hipo -(Numídia)-  a 28 de Agosto de 430. Recebeu a sua primeira educação em Cartago, e adquiriu fama como homem de leis e grande orador. Nos primeiros anos  pertenceu à seita dos Manicheus,  apesar do ensino cristão de sua mãe, Santa Mônica; mas aos trinta anos de idade o bispo Ambrósio, em Milão,  converteu-o ao cristianismo. Em 396 foi congregado bispo de Hipo na África, onde esteve até morrer. A ele se deve, principalmente, a forma atual da doutrina cristã. As suas principais obras foram: Confissões, 397 e A Cidade de Deus escrita em 426. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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CONFISSÕES 
Por santo Agostinho
        Como chegou à juventude e entregou-se aos vícios 
                Quero lembrar-me das minhas fealdades passadas, e das carnais torpezas da minha alma; não porque as ame, mas para vos amar vós, meu Deus. Por amor do vosso amor o faço assim, trazendo à memória meus torcidos caminhos, em amargura da minha alma; para que vós me sejais doce, doçura verdadeira, que não engana, doçura ditosa e segura, que me congregastes da divisão, pela qual sou dividido em pedaços. Porque apartando-me de vós, que sois sumo bem para muitas coisas, me tornei em nada. Ardia eu algum dia com desejo de sacudir-me de saciar-me nestas coisas baixas, querendo nadar em vícios e tenebrosos amores: e a minha formosura se destruiu e corrompeu, e me desfez diante dos vossos olhos, agradando-me a mim, e querendo contentar os olhos humanos. 
                Que outra coisa me deleitava, senão o amar e ser amado? Mas não usava eu nisto do modo devido, guardando os termos do amor puro e nobre, senão que subiam umas névoas do lodo da minha carnal concupiscência e dos esconderijos da mocidade, que ofuscavam e escureciam o meu coração em tal forma, que não se conhecia a serenidade do amor pela escuridade do mau apetite.  Ardia um e outro confusamente; e arrebatando a minha fraca idade por uns despenhadeiros de apetites, me submergiam em pélago de pecados...
                Aonde estava eu? Quão longe andava desterrado dos deleites da vossa casa no ano dezesseis da idade da minha carne, quando esta tomou em mim o cetro e lhe rendi as mãos com a loucura da minha lasciva, permitida pela torpeza humana e ilícita pela vossa  Lei santa. Não tiveram cuidados os meus, vendo-me cair, de levantar-me com o remédio do lícito matrimônio; mas cuidavam em que fosse grande Orador, para que com minhas artificiosas palavras persuadisse os homens. 
                 
Das jornadas que fez por motivo dos seus estudos
                 Naquele ano deixei de estudar alguns dias, vindo da cidade de Madauro (diocese), onde havia ido para estudar a Oratória, enquanto ordenavam mandar-me a Cartago, cidade que estava algum tanto mais remota que a primeira; a cujo caminho e empresa eu me dispunha com mais ânimo que dinheiros, por ser meu pai um pobre cidadão da cidade de Tagaste (Numídia). Mas a quem conto eu, Senhor, estas coisas? Não a vós, meu Deus; mas conto-as na vossa presença à minha geração, que é o gênero humano, que vir este meu livro. Porém, para que digo eu isto? Para que eu, e os que isto lerem saibamos de quanta profundidade vos devemos invocar. Mas que coisa há tão próxima, e propínqua como os vossos ouvidos, se o coração vos confessar, e a vida for conforme à fé. Quem havia que não desse louvor a meu pai, porque gastava comigo mais do que permitia a sua possibilidade, dando-me tudo o que era necessário para o meu estudo, sendo grandes os gastos, que nisto se faziam, em um país tão remoto; não se praticando semelhante diligência e cuidado na provisão dos filhos de outros mais ricos que meu pai; mas não se fatigava ele muito em como havia de crescer, e aproveitar no vosso serviço, nem tinha muito cuidado da minha castidade; mas todo seu cuidado era, que eu fosse sábio e discreto; ou para melhor dizer, apartado de vos servir a vós, meu Deus, que sois único e verdadeiro Senhor do vosso campo, que é o meu coração.
                  Mas naquele décimo sexto ano, que não estudei, por causa da necessidade em que estava a casa de meu pai, enquanto me aparelhavam as coisas necessárias para o estudo, estive em casa, dando-me ao ócio, onde cresceram tanto os espinhos dos vícios sobre mim, que me cobriram a cabeça e não havia mão que os arrancasse. Antes vendo-me meu pai nos banhos rodeado da inquieta juventude, como quem já folgava, com a esperança de ter de mim netos, o disse a minha mãe, alegrando-se com a embriaguez das coisas deste mundo, com que os homens se esquecem de seu Criador, e amam a criatura em vez de amar-vos a vós. Bem invisível, pervertendo o amor da sua perversa vontade abatida das coisas baixas. Mas no peito de minha mãe já vós haveis começado a edificar o vosso templo e morada; porque meu pai ainda era catecúmeno, e novo nas vossas coisas. De sorte que minha mãe, vendo isto, se alegrou com um pio tremor; e ainda que eu não era naquele tempo muito fiel, temeu ela os meus torcidos caminhos, por onde caminham os que vos não querem ver e vos voltam as costas. 
                Ai de mim! Atrevo-me a dizer que vós, Deus meu, vos caláveis andando eu longe de vós. Assim caláveis, e não me faláveis. Mas de quem eram senão vossas aquelas palavras, que cantastes aos meus ouvidos, por minha mãe,fiel serva vossa? ainda que nada delas entrava no meu coração para o por obra. A sua vontade era que eu me apartasse de toda a mulher, principalmente das casadas; e por certo me lembro muito bem que me aconselhou isto com muita eficácia; cujos conselhos me pareciam conselhos de mulheres, aos quais eu tinha vergonha de obedecer. Porém eles eram conselhos vossos, e eu não os conhecia, mas cuidava que vós caláveis; e falando aquela, pela qual vós não deixáveis de me falar, vos desprezava naquela vossa serva, eu filho seu e servo vosso. Mas eu não sabia o que fazia, e ia cego de cabeça abaixo, caminhando à minha perdição; de forma que, entre os meus iguais e companheiros, tinha vergonha de ser menos desonesto do que eles, quando os ouvia louvarem-se das suas desonestidades; os quais tanto mais se vangloriavam, quanto eram mais torpes; e me deleitava no mal obrar, não tanto pela má obra, como por louvar-me dela. Que coisa há digna  de vitupério senão o vício? E eu cego, por não ser vituperado, me fazia mais vicioso; e quando não tinha cometido algum mal, pelo qual me pudesse igualar com perdidos, fingia ter feito o que nunca fizera, por não parecer e ser estimado em menos, quanto era mais inocente; e por não ser tido mais vil, quando era casto. 
               Estes são os companheiros com que eu passeava pelas praças de Babilônia; e me revolvia em seu lodo, como se fora bálsamo, ou cinamomo, ou outros cheiros, e preciosos perfumes. E no meio dela, para mais se apegar e enlodar, me achava invisível e me enganava, porque eu era enganado. Nem tão pouco aquela que já tinha fugido do meio da Babilônia (digo minha mãe), ainda que no demais não caminhava mui depressa, assim como me havia persuadido a castidade, assim cuidou no que meu pai de mim tinha dito; e ela entendia que para o diante poderia ser coisa pestilencial e perigosa, isto é, não cuidou em refrear com o matrimônio o que de todo não podia tirar.  Não cuidou nisto, porque cuidou que seria embaraçada a minha esperança com a prisão da mulher; não digo aquela esperança, que minha mãe em vós da outra vida, mas a esperança das letras, as quais meu pai e minha mãe desejavam muito que eu aprendesse, ele porque de vós quase não cuidava, e de mim cuidava vaidades; e ela, porque cria que não só me não podiam fazer dano as letras, mas antes me podiam ajudar alguma coisa a conhecer-vos. Isto é quanto eu posso alcançar dos costumes de meu país. Afrouxavam-me também as rédeas, para que  não jogasse mais do que convinha à severidade, para dissolução de várias paixões e desejos desordenados; e em todos, meu Deus, havia uma curiosidade, que me escondia e cerrava a serenidade da vossa claridade e saia como uma grossura a minha maldade. 
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 A seguir ele conta sobre um furto que fez. 

                 A Vossa Lei, Senhor, sem dúvida castiga o furto, que é lei escrita nos corações dos homens, a qual nem a mesma maldade pode apagar. que o ladrão há que sofra com paciência o outro? nem ainda o rico consente que furte o pobre: e eu quis furtar e o executei, sem ser obrigado da necessidade nem de falta alguma; mas enfadado da justiça e cheio de excessiva maldade. Porque furtei aquilo que me sobrava; e era muito melhor o que eu tinha, que o que furtava. Nem me queria aproveitar daquilo que furtava; mas folgava-me com o furto, e com o pecado. Havia  um peral junto da vossa vinha, carregado de peras, não gostosas nem formosas; este peral sacudimos nós uma noite e roubamos as peras, alta noite; e depois de havermos jogado em umas eiras fomos bem carregados delas, não para as comer, mas para as deitar aos porcos, ainda que nós também comemos alguma coisa delas. De forma que o que fizemos delas só nos foi gostoso por ser vedado. Vedes aqui o meu coração; Deus meu, vedes aqui o meu coração do qual tiveste misericórdia no meio do abismo. Diga-vos agora o meu coração, que buscava ele nisto, em ser mau sem porque, e sem haver causa da minha malícia senão a minha mesma malícia. Era feia, e eu a amava. Amei a minha morte e a minha perdição; e amava não tanto aquela em que pecava, como esse mesmo pecar. Torpe era a minha alma, saindo fora da vossa firmeza para minha perdição e não desejando coisa alguma afrontosa, mas amando a mesma afronta.
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Em seguida ele nos fala que ninguém peca sem causa
               Não se pode negar haver nos corpos formosura, como claramente se vê no ouro e na prata, e em tudo o mais; e a conveniência que se sente no tato da carne pode muito, e em cada um dos outros sentidos tem sua harmonia e conserto dos corpos. Tem também sua formosura a honra temporal e o poder de mandar; de onde nasce o desejo da vingança; e contudo nós não havemos, Senhor,apartar de vós, nem de vossa lei por alcançar estas coisas. E a vida que aqui vivemos tem seus afagos, por certo modo e conveniência da sua formosura e decoro, com tudo, isto que cá em baixo parece bem. Também a amizade dos homens é uma suave paixão, pela unidade de muitos ânimos. Por todas estas coisas e outras semelhantes pecamos, quando com uma imoderada inclinação que lhes temos, sendo eles os mais abatidos bens, deixamos os maiores e melhores, a vós Senhor, nosso Deus e nossa verdade, e a vossa lei. Na verdade, que estas coisas baixas tem seus deleites; mas não como o meu Deus, que as fez; porque nele se deleita o justo, e ele é o deleite daqueles que são retos de coração. 
                 De maneira que, perguntada a causa porque se comete algum pecado, não se costuma crer haver outra, senão o apetite de alcançar algum daqueles bens, que dissemos serem os últimos e derradeiros, e  o medo de os perder. São eles sem dúvida formosos, o que se não pode negar, ainda que em comparação dos soberanos e beatíficos, os de cá debaixo são vis e de nenhum valor. Aquele outro matou um homem. Por que? porque queria bem a sua mulher ou desejava a sua fazenda, ou o queria roubar para ter de que viver; ou porque temia do que matou outro tanto mal, ou se quis vingar dele pelo ter afrontado. Pode haver homem algum que matasse a outro, somente por se deleitar no homicídio, sem haver precedido causa? Quem tal há de crer? Pois aquele malvado e cruel Catilina -(Lúcio Sérgio Catilina, Senador e militar da Roma antiga) - de quem deixamos dito ter-se exercitado em tais obras, por não ter ociosas as mãos e o ânimo; a causa já a dissemos; a saber que se quis empregar em semelhantes obras, por não ter ociosas as mãos e o ânimo. E isto porque? para que, exercitado nestas maldades, e apoderado de Roma,alcançasse honra e fazenda, e mando livre das leis, da pobreza e da consciência. De sorte que nem este Catilina cruelíssimo amou as suas crueldades e vícios por si mesmos. 

Trechos retirados do livro de Confissões de Santo Agostinho.
Nicéas Romeo Zanchett