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sábado, 27 de julho de 2013

OS CONTOS DE VICTOR HUGO


OS CONTOS DE VICTOR HUGO 
Nicéas Romeo Zanchett 
A BOA PULGA E O MAU REI 
                 O grande poeta francês Victor Hugo tinha um imensa afeição pelas crianças. Uma de suas obras mais notáveis foi "A arte de ser avô"; é uma prova de amor pela netinha Joanna, uma simpática menina, muito esperta, de quem o famoso avô era um humilde escravo. 
                  Em certa ocasião um senador contou que foi até sua casa para consultá-lo; chegando lá encontrou o poeta andando de quatro pelo quarto, servindo de cavalinho para os netos. O político estranhou, mas Victor foi logo dizendo: - "eu sou mesmo um escravo de meus netos." 
                  Sua neta Joanna sempre pedia que lhe contasse histórias. 
                  - Vovô, sente aqui e nos conte uma história. 
                  - É muito difícil inventar histórias, replicou o avô. 
                  - Não para ti, disse Joanna, acariciando-o. Escreves muitas histórias, mas quero que nos conte uma que ainda não esteja nos teus livros, avozinho. 
                  Os netos Jorge e Joanna sentaram-se aos pés do avô  e ele começou a narrar  o maravilhoso conto, "a boa pulga e o mau rei". 
                                                     A BOA PULGA E O MAU REI 
                   Era uma vez um rei muito mau que maltratava os seus súditos, mas estes não podiam destroná-lo porque possuía um grande exército para sua defesa. 
                   Todas as manhãs se levantava  com humor pior do que o da noite anterior, até que isso chegou aos ouvidos duma pulga muito amável e de muito bons sentimentos. Nem todas as pulgas são assim, mas aquela tinha sido muito bem educada; ela só mordia as pessoas quando tinha muita fome, e mesmo assim tinha todo o cuidado para não lhe fazer mal. 
                    "Vai ser difícil fazer este rei entrar no bom caminho", disse consigo mesma a pulga; "contudo, vou tentar". 
                    Naquela noite, quando o rei começou a conciliar tranquilamente o sono, sentiu qualquer coisa como uma picada de alfinete. 
                    - Oh! o que é isto? - gritou o rei. 
                    - Uma pulga que quer castigá-lo. 
                    - Uma pulga? Vamos ver. Espera um pouco. 
                     E levantando-se furioso da cama, o rei sacudiu lençóis e cobertores, mas não pode encontrar a pulga, pela simples razão que que ela havia se escondido na barba do monarca. 
                     Pensando tê-la afugentado, o rei tornou a deitar-se, mas tão logo deitou a cabeça no travesseiro, a pulga deu um salto e o mordeu de novo.
                     - Como se atreve a morder-me outra vez abominável inseto?, exclamou. Não tem mais do que o tamanho de um grão de areia e atacas o mais poderoso rei da terra? 
                     A pulga, sem se incomodar  sequer o respondeu e continuou a mordê-lo . Durante toda a noite não pode o rei fechar os olhos, e no dia seguinte levantou-se de péssimo humor. Mandou fazer uma limpeza extraordinária e vinte sábios, armados com potentíssimos microscópios, examinaram cuidadosamente o quarto e tudo o que nele entrava. Mas não acharam a pulga, porque ela tinha se escondido de baixo da dobra da roupa que o rei vestia. Naquela noite o monarca, precisando de descanso, deitou-se muito cedo. 
                     - O que é isso, gritou, ao sentir uma terrível picada.
                     - A pulga. 
                     - O que queres? 
                     - Que me obedeças e faças feliz o teu povo. 
                     - Onde estão os meus soldados? Onde estão os meus generais, os meus ministros? gritou o rei. 
                     Todos entraram rapidamente no aposento real. Fizeram a cama em pedaços, rasgaram o papel das paredes, arrancaram o piso, e, diante de tudo isto, a pulga estava muito bem escondidinha na cabeleira do rei. Dirigiu-se este para outro aposento, no qual tratou de dormir, mas a pulga deu outro salto, começou a mordê-lo e não o deixou descansar em  toda a noite. No dia seguinte o rei, furioso, fez publicar um edital contra as pulgas, no qual ordenava a seu povo que exterminasse a todas com a maior brevidade possível. Mas nem assim se livrou do pequenino inseto, que o perseguia incessantemente. O seu próprio corpo ficou manchado dos beliscões e pancadas que em si mesma dava nos esforços vãos que fazia para afastar a sua implacável inimiga. Depois de passar noites sem dormir, começou a ficar fraco e pálido, e com certeza teria morrido, se finalmente não tivesse decidido obedecer à pulga. 
                    - Entrego-me, disse em tom lastimoso o grande monarca, quando a pulga tornou a mordê-lo. 
                    - Farei tudo o que quiseres. Fala. 
                    - Deve fazer feliz o teu povo, disse a pulga. 
                    - Que hei de fazer para conseguir?, respondeu o rei. 
                    - Tens que abandonar imediatamente este país. 
                    - Posso levar comigo ao menos uma parte dos meus tesouros?
                    - Não!. exclamou a pulga. 
                    Mas, não querendo ser demasiadamente severa, a pulga permitiu ao malvado rei encher os bolso de ouro antes de se por a caminho. Então o povo constituiu-se em república, governou-se a si mesmo e chegou a ser feliz. 
                    Tanto Joanna como Jorge divertiram-se muito com este alegre conto, porque o vovozinho, imitando o implacável rei, atormentado pela boa pulga, revolvia-se e batia-se com tão cômicos movimentos  que as crianças quase morriam de rir. 
                     Satisfeito com o efeito produzido, Victor Hugo ensinou-lhes o maravilhoso conto que se segue.

                                                 O CÃO FIEL E O CRUEL MENINO
                     Era uma vez um cão muito bom, de cujo nome não consigo recordar-me; só sei que era um cão excelente, em toda a extensão da palavra; teria dado qualquer coisa para ser seu amigo. Por desgraça era muito feio e além disso quase nunca se lavava; mas a culpa era do dono, um mocinho rebelde que costumava maltratá-lo. 
                     Um dia, este perverso mocinho foi para aborda dum lago, bastante profundo, para fazer uma brincadeira que certamente conhecem. O mocinho tinha um punhado de pedras e atirava-as à superfície do lago, procurando que tocassem na água, saltando três ou quatro vezes. O cão estava sentado à distância, observando-o.  De repente o mocinho escorregou pela borda muscosa do lago e caiu na água. Já estava quase a afogar-se, quando o animal, saltando atras  dele, agarrou-o pela roupa e o salvou, conduzindo-o para terra. Mas aquele perverso, ficou zangado porque o cão, ao tirá-lo do lago, tinha lhe rasgado um pouco a roupa; em seguida atirou o cãozinho novamente à água em busca do seu chapéu, e enquanto ele nadava começou a atirar-lhe pedras, e por pouco não fez com que o pobre animal se afogasse. 
                     Um lobo faminto e feroz viu o que acabava de acontece, e, imaginando que o pobre cão ficaria alegre vendo-se livre dum dono tão mau e ingrato, aproximou-se, sem fazer barulho, do cão e murmurou-lhe o ouvido: 
                     - Deixa que eu vou devorá-lo.
                     Mas o cão fingiu ser surdo daquele ouvido, e o lobo, já cansado de falar, atirou-se ao mocinho. O fiel cão, porém, arremeteu-se contra o lobo, e depois de encarniçada luta, conseguiu afugentá-lo. Entretanto o mau dono tinha se escondido atras de uma árvore e armara-se com um pau. O bom animal correu para seu dono, alegríssimo  pela vitória, mas o mocinho, com voz irada, exclamou: 
                    - Para trás, bicho feio! Por que me amedrontaste lutando daquela maneira com aquele horrível animal? Bruto, brigão!
                    Mal acabou de dizer estas palavras, desatou a dar pauladas  no infeliz animal e acabou por expulsá-lo a pedradas. 
                    Mas o pobre cão continuou a seguir fielmente o seu malvado dono, que, sem nunca se cansar de cometer más ações, entrou num pomar para roubar maçãs. Bem sabia que o dono do pomar era um homem que não tinha contemplação alguma com ladrões; mas imaginava que naquela ocasião estaria o dono ausente, talvez no mercado.  Começou a apanhar maçãs e a atirar ao pobre cão as que encontrava verdes.  De repente apareceu o homem, e, desesperado, foi até ele armado com uma espingarda. Apontou-lhe com raiva, e disse-lhe: 
                   - Ou me paga imediatamente as maçãs ou disparo. 
                   O perverso mocinho não tinha nem uma miserável moeda nos bolsos. Vendo-se perdido, começou a gritar: 
                   - Cachorro, cachorro, venha até mim! 
                   Os cães não podem trepar em árvores, mas aquele podia. Saltou para o tronco como se fosse de borracha, e segurando-se aos ramos com os dentes conseguiu chegar ao pé do dono protegendo-o com o próprio corpo, precisamente no momento em que o dono do pomar disparava a arma. 
                    A bala penetrou o corpo do bravo e nobre animal. O pobrezinho voltou seus olhos moribundos para o mocinho, como implorando auxílio, mas este já ia muito longe, correndo como bom ladrão que era. E assim morreu o fiel cão, vitima de sua inquebrantável lealdade. 
                    - O que foi feito desse menino tão malvado? perguntou Joanna, nervosa de indignação ao ouvir contar os maus tratos que o cãozinho sofrera. 
                    - Continuou a ser mau, respondeu o avô, e pagou muito caro, porque ninguém nunca o estimou. 
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Essas pequenas e geniais histórias que Victor Hugo contava a seus netos, mais tarde passaram a fazer parte das suas publicações, e assim chegaram até nós.
Nicéas Romeo Zanchett 
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sábado, 20 de julho de 2013

ROBINSON CRUSOÉ - Daniel Defoe



No princípio do século XVIII, um inglês compôs uma narrativa  interessantíssima, cheia de curiosos e variados incidentes, a qual durante muito tempo, foi tida como verdadeira. O autor tinha descoberto a arte de contar acontecimentos fictícios, de tal forma que o leitor os julgasse reais. Chamava-se Daniel Defoe; e o seu livro: "Robinson Crusoé". É, sem dúvida, uma grande obra de imaginação, ainda que a ideia em si fosse sugerida a Defoe pelas aventuras verdadeiras de um marinheiro chamado Alexandre Selkirk, que naufragara na ilha de João Fernandes. 
Nicéas Romeo Zanchett 
ROBINSON CRUSOÉ - Daniel Defoe 
Resumo de Nicéas Romeo Zanchett 
                      Robinson Crusoé começa a sua história contando-nos que nasceu em Nova York no ano de 1662 e que era o terceiro filho d'uma honrada família. O pai desejava que se tornasse advogado, mas ele só pensava no mar. 
                      O autor dos seus dias, homem grave e sisudo, não deixava de lhe dar sãos e excelentes conselhos,dizendo-lhe que há homens a quem a fortuna volta as costas ou que conseguem alcançá-la à custa de grandes perigos, sendo, portanto, melhor contentar-se com uma profissão mediana que, no seu entender, era a posição mais invejável do mundo. 
                      Mas, passados alguns dias, diz Robinson Crusoé, "esqueci tudo isso e, ainda não decorrera um ano, quando parti de Hull, não me importando com o que o meus pais pensassem e, sem implorar a bênção  do céu nem a paterna, embarquei, no dia 1 de Setembro de 1651, a bordo d'um navio que partia para Londres". 
                     O navio naufragou, mas os tripulantes  conseguiram chegar à terra graças a um bote que foi mandado de um farol em seu auxílio.  Desembarcaram perto de Cromer e tomaram o caminho de Yarmouth, onde deram dinheiro a Crusoé para ele regressar a Hull ou continuar a sua viagem até Londres. Sem se despedir sequer do capitão, que se lamentava de ter levado no seu navio uma espécie de Jonas personificado no nosso Robinson, este desistiu completamente de qualquer ideia de voltar para traz, e caminhou-se para Londres, onde tomou passagem a bordo de um navio que partia para a costa da Africa e cujo capitão, que simpatizou com ele, lhe disse o que deveria comprar para fazer negócios; e ele, pelo seu lado, tinha aprendido alguma coisa da arte de navegação. 
                      "Esta viagem, a única viagem feliz entre minhas aventuras, converteu-me em marinheiro e negociante; regressei a Londres com cinco libras e duas onças (uns dois quilos e meio) de ouro em pó, que vendi por 300 libras esterlinas, e com esta quantia dispus-me a realizar as aspirações que deveriam conduzir-me à desgraça."
                      Conta que destinou 100 libras ao empreendimento de uma nova aventura e entregou à guarda e cuidado da mulher do seu amigo, o capitão, as 200 libras  restantes; depois embarcou no mesmo navio, agora comandado pelo primeiro piloto.  Uma manhã, navegando entre as ilhas Canárias, foram surpreendidos por um corsário mouro de Salé, e, depois de um rude combate, foram todos aprisionados e conduzidos àquele porto. 
                     Enquanto os seus companheiros eram levados à corte do imperador, Robinson Crusoé ficou em poder do capitão pirata que fez dele seu escravo. 
                     " Quando o meu novo amo embarcava", diz ele,"deixava-me em terra para eu lhe vigiar um jardinzinho e o trabalho dos escravos; e quando vinha para casa, mandava-me para o seu camarote a fim de vigiar o navio."
                     A FUGA DE CRUSOÉ - Crusoé foge do poder do pirata e empreende uma viagem.
                     Uma vez o pirata comprou uma lancha de um navio inglês para nela se dedicar a várias excursões; e este foi o primeiro dos acontecimentos que facilitaram a fuga de Crusoé nas circunstâncias que ele nos refere nos seguintes termos: 
                      "Aconteceu que o pirata se dispôs a embarcar na lancha com dois ou três mouro de categoria e enviou para bordo, na véspera, uma grande quantidade de provisões, bem maior do que era costume, ordenando-me que levasse eu três mosquetes com pólvora e balas porque projetava um encontro a par da pescaria. Na manhã, o meu amo chegou a bordo sozinho e disse-me que os convidados  tinham desistido da expedição e mandou-me então ir à pesca com um parente e um mocinho a fim de trazermos peixe para a ceia que ia oferecer aos seus amigos. "
                      "Assaltaram-me naquele instante as minhas primeira ideias de libertação; encontrava-me com uma embarcação ás minhas ordens aprovisionada pelo meu amo, não para uma partida de pesca, mas para uma viagem. Abastecido de tudo que me era preciso, saí do porto para pescar. A certa altura consegui desembarcar-me do mouro, atirando-o o mar, e fiquei só com o mocinho, que se chamava Xury. " 
                       "Cinco dias fui navegando até que  me aventurei a saltar em terra. Deitei a âncora na embocadura d'um rio; não vi nem desejava ver ninguém; o que eu queria era arranjar água para beber."
                       "Fomos cada um para o seu lado até que Xury veio dizer-me que tinha encontrado água boa e que não vira um único selvagem. Agora escusávamos de nos inquietar; descobrira num outeirinho perto perto da enseada um manancial de água fresca que brotava durante a maré baixa; enchemos com ela os nossos cântaros, fizemos honra ao jantar e preparamo-nos para seguir viagem." 
                       Depois de um encontro com uma tribo de negros pacíficos, Crusoé foi costeando até perto de cabo Verde, onde um navio português em viagem para o Brasil o recolheu. O capitão mostrou-se  animado e dos mais amistosos sentimentos, além de negar-se a aceitar qualquer pagamento, mas pediu a Crusoé que lhe vendesse o mocinho e a lancha. A princípio Crusoé não gostou da ideia de vender Xury, mas o capitão prometeu-lhe que lhe daria a liberdade e ele, no final de dez anos, estivesse convertido à fé cristã, e como Crusoé bem sabia era isso mesmo que iria acontecer, e concluiu o negócio com o português. 
                      CRUSOÉ NO BRASIL - Faz fortuna como plantador de fumo. 
                      Depois de uma viagem feliz, chegou ao Brasil onde se associou com um plantador de assucar  Escreveu á sua amiga, a esposa do capitão inglês, depositária dos seus fundos, pedindo-lhe que empregasse a metade  da soma que tinha em seu poder na compra de gêneros ingleses consignados em Lisboa, onde o capitão os tomaria na próxima viagem ao Brasil. 
                      Cedidos aqueles gêneros por bom preço, Crusoé comprou  uma plantação de fumo e, em quatro anos, acumulou grandes riquezas, apear de não se sentir satisfeito, pois ambicionava muito mais. 
                     Falou aos seus companheiros plantadores e aos negociantes da Bahia da sua viagem a África; explicou-lhes como, a troco de algumas bagatelas, se podia obter, não só ouro em pó, marfim etc., como também escravos para o serviço nas plantações.  E, um dia, três fazendeiros propuseram-lhe pôr um navio às suas ordens para ele realizar o negócio que queria; Robinson aceitou, e, para tal fim, embarcou na qualidade de feitor ou zelador das mercadorias. 
                    A VIAGEM À ÁFRICA - preparou-se para a arriscada viagem. 
                    Sem coragem de resistir ao oferecimento, mas, por outro lado, os perigos a que se expunharia dirigindo-se para a costa da África. Crusoé fez o seu testamento, para garantir a propriedade das suas plantações e outros interesses. 
                   "Em suma", escreve ele, "tomei todas as precauções possíveis para salvar a minha plantação e os objetos que me pertenciam, pondo em tudo a maior prudência, ainda que mais pesaram no meu ânimo os impulsos do capricho e da fantasia do que os da razão. 
                    O NAUFRÁGIO numa ilha deserta. 
                    O navio em que Robinson e seus companheiros tinham largado do Brasil, teve de sofrer, doze dias depois, os efeitos de um violentíssimo furação que lhe causou grandes avarias. Um dos tripulantes morreu doido e um marinheiro e um grumete foram arrebatados pelas ondas tempestuosas. 
                    Resolveu que o navio tomasse o rumo das Índias Ocidentais, pelas más condições em que se encontrava, mas sobreveio outro furioso  temporal e, durante doze dias, o barco andou sobre o mar revolto, à mercê da ventania. 
                    Abandonados assim á fúria dos elementos climáticos desencadeados, uns suspiravam por descobrir terra, enquanto outros, encerrados nos seus camarotes, esperavam o momento em que a embarcação encalhasse em algum banco de areia ou que as ondas os espatifassem. Onze homens embarcaram numa cano, entregando-se à vontade de Deus e à fúria do mar cada vez mais tempestuoso. Tendo navegado uma légua e meia, uma onda do tamanho de uma montanha caiu com tal furor sobre o bote, que o fez submergir nas águas, e os tripulantes foram tragados num instante pelo abismo. 
                   CRUSOÉ SALVA-SE 
                   "O mar arremessou-me à terra", diz Crusoé, "ou melhor, contra uma rocha sobre a qual fui cair sem sentidos. Felizmente voltei a mimantes da maré cheia; e chegando à terra pude contemplar com grande satisfação, do alto dos penhascos da costa, o perigo de que me tinha livrado, ficando em condições de voltar ao navio quando chegasse a hora da maré baixa. 
                    Encontrava-me, pois, são e salvo em terra; dei  graças a Deus por me ter salvo a vida de tão horrível transe, pois tudo fora questão de minutos, passados os quais não havia mas esperança alguma. É impossível exprimir os êxtases e transportes de quem se vê a salvo como eu me vi, depois de ter passado por tão tremendo perigo.  Fui andando ao longo da praia tocando-me e apalpando-me, para me convencer bem de que estava vivo; fazia mil gestos e movimentos para me certificar de que era o mesmo, e pensei na sorte dos meus camaradas, dos quais nem um só escapara. Nunca mais os ternei a ver; só, mais tarde, pude recolher três chapéus  uma gorra e uns sapatos que lhes pertenciam.  Lancei os meus olhos ao navio despedaçado que jazia ao longe. Como tinha Deus sido tão bom para mim, permitindo-me que alcançasse a costa?" 
                    A PRIMEIRA NOITE NA ILHA
                    No entanto não tardou muito tempo para que Crusoé viesse a perceber  as tristes condições a que se via reduzido;  estava encharcado até os ossos e não podia mudar o fato; não tinha nada para comer nem beber; não tinha consigo uma arma sequer; possuía apenas uma navalha, um cachimbo e um pouco de fumo. Ia se aproximando a noite e o único recurso que se lhe oferecia era um espesso bosque de abetos, cheio de perigos.
                    Antes de mais nada precisava comer e beber, e por esse motivo se internou pela ilha, tendo a sorte de encontrar um ribeiro de água fresca, com o qual se reanimou. Com isso e com o fumo que poderia iludir a fome, pouco depois, adormeceu.  Estava tão cansado que  só acordou quando já era dia claro. A tempestade havia se acalmado e o céu esta azul e claro. 
                    A VIDA NA ILHA - a construção da sua fortaleza. 
                    Quando Crusoé acordou em cima da árvore que trepara para passar a noite, viu que a embarcação naufragada tinha sido empurrada pelas ondas para perto da terra e se encontrava agora apenas a uma milha da praia. Pensou que poderia aproveitar daqueles destroços algumas coisas que lhe fossem de utilidade; saiu nadando e, valendo -se de umas cordas, conseguiu chegar a bordo, onde verificou que os seres vivos que lá havia eram um cão e dois gatos, que dai por diante  passaram a ser os seus únicos companheiros. 
                    RETIRANDO UTENSÍLIOS E PROVISÕES 
                    Como não havia tempo a perder, encheu as algibeiras com bolachas, construiu uma jangada, à qual ligou algumas arcas dos marinheiros, depois de as ter abarrotado de viveres, ferramentas e munições, e voltou para a terra. 
                    No dia seguinte voltou ao navio, construiu outra jangada e levou-a para a terra carregada. Durante onze dias foi repetindo aquelas visitas e assim acabou por levar para a terra quase tudo que havia a bordo. Dispondo-se a voltar mais uma vez, viu que o navio desaparecera. 
                    Então, reparando numa pequena explanada que havia no cimo d'uma rocha alta, donde se dominava uma grande extensão de mar, podendo portanto daquele lugar fazer qualquer sinal pedindo socorro a algum navio que passasse, resolveu  erguer ali a sua habitação feita com a vela do barco naufragado. 
                    Diante desta barraca traçou um semi-círculo duns vinte metros de diâmetro, cujas duas extremidades terminavam na rocha. Pela borda deste semi-círculo, cravou solidamente  na terra duas fila de rájidas estacas, a quinze centímetros uma da outra e de modo a ficarem com metro e meio de altura acima do solo. 
                    AS DEFESAS DA CABANA
                    Aguçou os estremos das estacas e encheu os intervalos entre elas  com grossos cabos trazidos do navio. Colocou outras estacas no interior, chegadas umas às outras, de 70 centímetros de altura, todas pontiagudas.  Era tão sólida esta obra de defesa que nenhum homem ou animal poderia atravessá-la. Não lhe deixou nenhuma abertura ou porta,e, para poder entrar e sair, arranjou uma pequena escada móvel que apoiava contra esta muralha ou retirava, conforme queria. 
                     Dentro deste cerco ou fortaleza construído com imenso trabalho, acumulou todas as suas riquezas, provisões e objetos diversos, armando pata tal fim duas barracas, uma mais pequena interior, outra maior, envolvendo a primeira; cobriu tudo com um grande encerado que encontrara a bordo. 
                     Observando que a rocha, na parte de traz, se apresentava ligeiramente escavada como se fosse a entrada duma gruta, e não era muito rígida, tratou de alargar e aprofundar aquela escavação e arranjou uma pequena gruta de suficiente tamanho para lhe servir de cozinha. Repartiu a pólvora por uma centena de sacos que colocou em pontos diferentes e afastados uns dos outros para, em caso de explosão, não perder toda a sua reserva.  
                      A fim de não perder a conta do tempo, gravou num poste largo as seguintes palavras: "Encontro-me neste sítio desde o dia 30 de Setembro de 1659." E fazendo com outra madeira e este poste uma espécie de cruz, plantou-a na praia. Nos braços deste poste, todos os dias ia traçando um risco, fazendo-os mais compridos de sete em sete, para marcar os domingos.
                     PRODUÇÃO DE PÃO
                     Entretanto averiguou que na ilha havia cabras, coelhos e gatos monteses, assim como aves silvestres, e foi guardando as peles dos animais que matava para comer. 
                     Terminada a obra da fortaleza, fabricou algumas cadeiras e uma mesa com madeira de certas árvores que  cortava para tal fim, servindo-se de um machado e alinhando-a depois com um enxó.  Mais tarde, depois de uma grande tempestade, apareceram na praia alguns restos do navio naufragado, e Crusoé aproveitou a ocasião para se aprovisionar de tábuas e de ferragens que mais tarde lhe seriam muito úteis. 
                    Um dia, antes da estação das chuvas, despejou e sacudiu uns sacos velhos que tinham servido, no navio, para transporte de cevada e outros cereais; e, depois das chuvas, observou que, no lugar onde os escondera, apareciam uma linguetas verdes que, crescendo, acabaram por produzir algumas espigas de cevada e arros. Crusoé colheu-as e semeou-as, e assim foi fazendo durante quatro anos, até que, ao cabo desse tempo, conseguiu colher bastante para semear e guardar quantidades de cereal suficientes para com eles ir fazer pão. 
                    Tomou então as precauções precisas que os coelhos e os pássaros não prejudicassem as suas sementeiras. 
                     Um dia um forte terremoto veio assustá-lo muito;  mas, felizmente, não lhe causou dano algum. Mais tarde caiu doente, restabelecendo-se achou grande consolação na Bíblia, que também trouxera do navio ; percorreu a ilha, e no outro lado descobriu um formoso vale, onde construiu um caramanchão. 
                     Num outro ponto da ilha viu muitas pombas rolinhas, lebres e galinhas selvagens. Apanhou um papagaio e ensinou-o a dizer o seu nome. Capturou uma boa quantidade de cabras e levou-as para o seu cercado, prevenindo-se assim contra a falta de alimentos, aproveitando-lhes o leite, que conservava em toscas vasilhas de barro que ele mesmo fabricara. 
                     CONSTRUINDO UMA CANOA COM VELA
                      Já estava na ilha a seis anos, quando resolveu construir uma canoa; com ela, tinha a intenção de dar a volta em toda a ilha. Fabricou sacos e roupas com peles de animais e também alguns cestos.  Eis como, com suas próprias palavras, descreve sua roupa: "Andava com um grande, alto e extraordinário barrete de pele de cabra, um estranho casaco também de pele de cabra que me chegava aos joelhos e umas calças e chinelas da mesma fazenda. Trazia um cinturão de pele seca de cabra, no qual levava um serrote e um pequeno machado, e numa outra correia pendurada ao ombro trazia dois bolsos, também da mesma pele, com pólvora e balas.  Caminhava com uma cesta às costas, o mosquete a tiracolo e, na mão, uma grande, feia e tosca sombrinha de pele de cabra para me resguardar do sol. Cortava com frequência a barba, mas cobria-me o lábio superior um comprido bigode à moda maometana." 
                      Quando se ocupava nas suas plantações, ou no tratamento dos seus animais, empreendia pequenas incursões na sua canoa ou passeava em torno da ilha; e assim tinha sempre o seu tempo ocupado. 
                      AS PEGADAS NA AREIA
                      Um dia, depois de ter vivido quinze anos na ilha, ficou Robinson Crusoé profundamente surpreendido ao ver na areia da praia, impressa, uma pegada de pé humano descalço. A impressão que tal descoberta lhe causou foi como se uma aparição surgisse diante dele, e desandou a correr na direção da sua fortaleza, nem mais nem menos do que se fosse perseguido. Cheio de medo, não conseguiu dormir  nessa noite; durante três dias e três noites não saiu do seu abrigo. 
                      Do outro lado da ilha, Crusoé sempre avistava uma estranha faixa escura no horizonte, que pensava ser de terra; deduziu que a pegada na areia poderia ser de algum selvagem que teria vindo até a ilha; isto obrigou-o a tomar medidas para sua segurança. 
                      Quando, algum tempo depois, descobriu numerosos crânios e osso humanos, restos de um festim de canibais, retirou-se rapidamente para sua fortaleza; sentiu-se feliz por ter construído seu abrigo naquele lugar, onde não apareciam selvagens. 
                      Numa certa manhã, quando já haviam se passado vinte e três anos, assustou-se ao ver um grupo de selvagens  naquele lado da ilha e, descendo até a praia, depois de os ver partir, deparou com os restos de um novo banquete  de canibais, o que o levou a redobrar de precauções para não ser descoberto. 
                       Meses depois, ali perto aconteceu outro naufrágio, e Robinson pode aprovisionar-se de várias coisas de que estava precisando. 
                      Dois anos depois tornou a ver outro bando de selvagens que traziam dois prisioneiros. Enquanto esquartejavam um deles, o outro conseguiu fugir e desandou a correr na direção de sua cabana. Foi perseguido por dois canibais, mas Crusoé o salvou; e desde então este selvagem passou a ser seu fiel servidor; e como isto aconteceu numa sexta-feira, deu-lhe o nome de Sexta Feira. O negro logo aprendeu muitas palavras inglesas, que lhe eram ensinadas e tornou-se um excelente e útil companheiro em todos os trabalhos e aventuras na ilha. 
                     Um dia Sesta Feira chegou correndo e muito sobressaltado. Chegara à ilha um novo bando de selvagens em três canoas, e o negro estava convencido de que vinham à sua procura. Crusoé tranquilizou-o o melhor que pode; armaram-se e saíram da fortaleza. 
                     O ENCONTRO COM MAIS COMPANHEIROS
                      Quando chegaram perto dos canibais, estes estavam devorando um dos prisioneiros, enquanto o outro cativo esperava estendido na areia.  Este cativo era um branco. Crusoé e Sexta Feira fizeram fogo contra o bando, matando vários e dispersando o restante. Enquanto Crusoé libertava o homem branco, Sexta feira descobrira mais um prisioneiro deitado no fundo de uma canoa; era seu pai, como depois se comprovou. A partir de então Crusoé já tinha três companheiros. 
                      Depois de libertado, o branco disse que era espanhol e pertencia à tripulação, composta de dezesseis homens, dum navio que naufragara, e que havia sido feito prisioneiro dos selvagens da tribo a que pertencia Sexta feira.  Disse que foram bem tratados pela tribo de Sexta feira, mas que houvera uma guerra com outra  tribo e os derrotados foram todos feitos prisioneiros e eles eram alguns desses.
                      Antes disso  acontecer, Crusoé já estava construindo outra canoa. Decidiu que esta canoa seria usada por Sexta feira e os outros dois para trazer os demais espanhóis para sua ilha.
                     Depois que partiram, apareceu um e deles desembarcaram uns poucos homens, perto da habitação de Crusoé. Traziam três prisioneiros. Ao escurecer, enquanto os homens estavam dormindo, Crusoé aproximou-se dos cativos e viu que eram oficiais do navio. Tinha havido uma revolta a bordo. Crusoé libertou os três homens e, depois de vários episódios muito interessantes, o capitão tomou novamente posse do seu navio, no qual, depois dos sobreviventes  da revolta serem abandonados na ilha, Crusoé embarcou com Sexta Feira, finalmente deixando a ilha,  no dia 19 de Dezembro de 1686, o mesmo dia do mês em que ele fugira de Salé. 
                   Neste navio, Crusoé chegou à Inglaterra no dia 11 de Junho de 1687, após uma ausência de 35 anos. 
                   Pouco depois foi a Lisboa, e ali soube, por cartas que recebeu do Brasil, que os seus negócios tinham sido tão bem dirigidos que estava rico. 
                   Voltando á Inglaterra, Crusoé casou e estabeleceu-se numa linda quinta em Bedfordshire. Mas o velho espírito de aventura novamente tomou posse dele e após a morte de sua mulher, partiu novamente para a sua ilha, transformada numa próspera colônia pelos sobreviventes espanholais. 
                   Por fim Crusoé despediu-se da colônia, indo aventurar-se na China e na Russia. Voltou a Londres em 10 de Janeiro de 1705.
                   "E então", diz ele, "resolvi preparar-me para uma viagem maior do que todas estas, tendo vivido uma existência infinitamente variada durante setenta e dois anos, e aprendido o bastante para conhecer o valor do repouso e a ventura de acabar os dias em paz." 
                   O LIVROS SOBRE CRUSOÉ
                   Na verdade, Daniel Defoe escreveu três livros sobre Crusoé, não só relatando sua vida, mas falando sobre seus pensamentos em várias coisas. 
                   Esta história que acabo de resumir é contada no primeiro e mais interessante destes livros. E este deve, por sua originalidade,  ser lido  por todos que gostam de aventuras e boa literatura. 
Nicéas Romeo Zanchett. 


sábado, 13 de julho de 2013

ROBINSON CRUSOÉ - PEGADAS NA AREIA


PEGADAS NA AREIA 
 Por Daniel Defoe 
Quinze anos tinha vivido Robinson Crusoé na sua ilha deserta sem ver o mais leve vestígio de ser humano. 
Imagine, pois, a sua surpresa e receio ao ver um dia impressa na areia da praia uma pegada humana. A impressão que tal descoberta lhe causou foi como se a aparição de um fantasma surgisse diante dele. Naquela noite, cheio de medo, não pode dormir. Durante três dias e Três noites não saiu do seu abrigo. Tal era seu pavor.
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                 Um dia, quando ia para o meu barco, descobri muito distintamente  na areia os sinais dum pé nu. Nunca tive tão grande terror; parei repentinamente, como se tivesse sido fulminado pelo raio ou como se tivesse visto alguma aparição. Pus os ouvidos à escuta, olhei em torno de mim; mas não vi nem ouvi nada; subi a uma pequena eminência  para ver mais longe; desci e fui à praia, mas não descobri nada de novo, nem algum outro vestígio de homem do que aquele de que acabo de falar. Voltei lá na esperança de que o meu receio não era talvez senão uma imaginação sem fundamento; mas vi outra vez os mesmos sinais dum pé nu, os artelhos, o calcanhar e todos os outros indícios dum pé de homem. Não sabia que conjecturar; fugi para a minha fortificação, todo perturbado, olhando para trás de mim quase a cada passo e tomando todas as moitas que encontrava por homens. Não é possível descrever as diversas figuras que uma imaginação assustada acha em todos os objetos. Quantas idéias loucas e pensamentos extravagantes me não vieram ao espírito, enquanto eu  fugia para a minha fortaleza. 
                 Assim que lá cheguei, deitei-me logo como um homem  que é perseguido; não posso mesmo lembrar-me se entrei em casa pela escada ou pelo buraco aberto na rocha, e que eu chamava uma porta. Estava muito assustado para isso me ficar na cabeça. Nunca coelho algum nem raposa se refugiou na sua toca com mais terror do que eu no meu castelo, porque é assim que continuarei a chamar. 
                  Não pude dormir toda a noite; à medida que me afastava da causa do meu terror, os meus receios aumentavam, ao contrário do que acontece ordinariamente. As minhas ideias assustadoras perturbavam-me de tal modo que, posto que muito afastado do sítio onde tivera esse alarma, a minha imaginação não me representava nada que não fosse triste e terrível. Que seres tinham deixado o sinal que acabava de descobrir? Com toda a certeza que não podiam deixar de ser selvagens do continente que tendo-se metido ao mar com as suas canoas, tinham sido levados à ilha pelos ventos contrários, ou pelas correntes, e que tinham tido tão pouca vontade de ficar nessa praia deserta como eu tinha de os ver ai. 
                  Enquanto essas reflexões rolavam no meu espírito, dava eu graças ao céu de não ter achado nessa ocasião nesse sítio da ilha e o meu barco ter escapado aos olhos deles, porque se o tivessem visto, concluiriam certamente que a ilha era habitada, o que os poderia levar a procurarem-me e descobrir-me-iam. Em certos momentos imaginei que o meu barco fora encontrado, e esse pensamento agitava-me do modo mais cruel; esperava vê-los voltar em maior número, e receava que mesmo quando eu pudesse esquivar-me à sua barbaria, eles encontrassem o meu recinto, destruíssem o meu rebanho e me reduzissem assim a morrer de fome. Nesta situação, tinha a censurar-me o ter tido a preguiça de não semear senão o grão que me era necessário até à nova estação, e achei esta censura tão justa, que tomei a resolução de me fornecer sempre para dois ou três anos, a fim de não estar exposto a morrer de fome, se se desse comigo algum acidente. 
                  De manhã, estando no meu leito, inquieto por mil pensamentos referentes ao perigo que tinha a recear dos selvagens, achava-me no acabrunhamento mais triste, quando de repente me veio ao espírito esta passagem das Santas escrituras; "Invoca-me no dia da desgraça, e eu te livrarei, e tu me glorificarás."
                  Assim me levanto, não só cheio de nova coragem, mas ainda decidido a pedir a Deus a minha salvação pelas orações mais fervorosas; quando as acabei, peguei na Bíblia, e, abrindo-a, as primeiras palavras que me saltaram aos olhos foram estas: Pensa  no Senhor, e tem bastante coragem, que Ele  fortificará o coração. A consolação que tive com isso foi inexprimível; encheu a minha alma de reconhecimento pela Divindade e dissipou absolutamente os meus terrores. 
                 No meio desse fluxo e refluxo de pensamentos e de inquietações, veio-me um dia a ideia que o motivo do meu receio não passava talvez duma quimera, e que o vestígio que eu notara  podia muito bem ser o vestígio do meu próprio pé. Talvez, disse eu, saindo do meu barco, tivesse tomado o mesmo caminho que ao entrar; os meus próprios vestígios assustaram-me, fiz  o papel desses doidos que fazem histórias de espectros e de aparições, e que em seguida estão mais assustados com as suas fábulas que os seus leitores. 

                 Retomei coragem e saí do meu retiro para continuar no meu trabalho ordinário. Não saíra do meu castelo havia três dias e outras tantas noites, e começava a sofrer fome, pois que apenas tinha um minha casa algumas bolachas e água; lembrei-me então que as minhas cabras tinham necessidade que s lhe tirasse o leite, o que era de ordinário o meu divertimento da tarde. Não tinha razão para estar assim; os pobres animais tinham sofrido muito, muitos estavam doente, e o leite da maior parte estava seco. Animando-me pois pelo pensamento que eu tivera medo apenas da minha sombra, fui à minha casa de campo para mungir o meu rebanho; mas tomar-me-iam por um homem agitado pela pior consciência, ao ver com que receio eu caminhava, quantas vezes olhava para trás, como eu descansava de quando em quando no chão o meu cântaro de leite, e corria com tanta ligeireza como se tratasse de salvar a minha vida. 
                  Contudo, tendo estado assim dois ou três dias, tornei-me mais atrevido, e conformei-me no sentimento de que fora engano da minha imaginação. Não podia estar, contudo, plenamente convencido disso antes de ir a esse sítio e de medir o vestígio que me dera tanta inquietação. Logo que me achei no sítio em questão, vi, evidentemente, que não era possível que tivesse saído do meu barco ali perto; além disso, achei o vestígio de que se trata muito maior do que o meu pé, o que me encheu o coração de novas agitações.  Um calafrio me percorreu o corpo, como se tivesse febre, e voltei para casa, persuadido de que tinham desembarcado homens nessa praia, ou então que a ilha era habitada, e que  eu corria risco de ser atacado de improviso, sem saber de que maneira me precaver. 
                    Este caós de pensamentos me fez estar acordado toda a noite; mas adormeci quando era quase dia; a fadiga da minha alma e a prostração do meu espírito deram-me um sono muito profundo. Quando acordei, achei-me muito mais sossegado, e comecei a raciocinar sobre o meu estado sossegadamente. Depois dum falatório comigo mesmo, conclui que uma ilha tão agradável, tão fértil, tão próxima do  continente não devia ser  deserta como eu a julgara; que na verdade não havia habitantes fixos, mas que segundo parecia vinham ali algumas vezes com embarcações, ou voluntariamente, ou quando para ali eram levados pela força dos ventos contrários.  Da experiência de quinze anos, durante os quais  eu sempre vivera sem descobrir somente a sombra duma criatura humana, julgava poder inferir que se de  quando em quando a gente do continente era forçada a desembarcar na minha ilha, tornavam a embarcar logo que podiam, pois que até aqui não tinham achado conveniente  estabeleceram-se ali. 
                      Vi perfeitamente bem tudo o que tinha a recear; eram esses desembarques acidentais contra os quais a prudência queria que eu procurasse uma retirada segura. Comecei então a arrepender-me de ter furado a minha caverna tão depressa e de lhe ter dado uma saída no sítio onde a minha fortificação juntava o rochedo. Para remediar esse inconveniente, resolvi fazer uma segunda trincheira também em semi-círculo, a alguma distância da minha muralha, no mesmo lugar onde doze anos antes plantara uma fileira de  árvores.

 Pusera-as tão cerradas, que não me era preciso  mais que um pequeno número de caniçadas entre duas  para fazer delas uma fortificação suficiente. Achava-me assim defendido por duas trincheiras; a de fora era fortificada com peças de madeira, velhos caos  e tudo o que eu julgara próprio para a reforçar, e tornei-a da espessura de dez pés à força de para ali levar terra e de lhe dar consistência a andar por cima. Pratiquei cinco aberturas bastante largas para por ali passar o braço, nas quais eu pus os cinco mosquetes que tirara do navio, como já disse, e coloquei-os como canhões sobre espécies de carretas, de tal maneira que podia fazer fogo com toda a minha artilharia em dois minutos; fatiguei-me durante muitos meses a pôr esse entrincheiramento na perfeição, e não descansei  enquanto o não vi pronto. Acabada a obra, enchi um grande espaço de terra, fora da trincheira, de vergônteas de uma madeira semelhante ao vimeiro, própria para firmeza e para crescer em pouco tempo. Creio que enterrei na terra num ano só, mais de vinte mil, de modo que deixava um vazio bastante grande entre  esses bosques e a minha trincheira, afim de que  pudesse descobrir o inimigo, e que ele não pudesse arma-me emboscadas no meio dessas árvores novas. 
                    Dois anos depois formavam já um pequeno bosque espesso; e no fim de seis anos tinha diante da minha habitação uma floresta de tal espessura e de tão grande força, que era absolutamente impenetrável, e que alma viva não teria imaginado que escondesse a habitação duma criatura humana. 
                    Como eu não deixara avenida para o meu castelo, servia-me para entrar nele e para dali sair de duas escada; com a primeira subia até um sítio da rocha onde havia lugar para assentar a segunda, e depois depois de as retirar uma e outra não seria possível a ninguém chegar-se a mim sem correr os maiores perigos. 
                    Além disso, quando alguém tivesse tido bastante felicidade  para descer da rocha, encontrar-se-ia ainda para lá da minha trincheira exterior. 
                    Foi assim que tomei para minha conservação todas as medidas que a prudência humana me podia sugerir, e verão em breve que essas precauções não eram absolutamente  inúteis, apesar de então ser um vago receio que as inspirava. 
                     Durante esta ocupações, não deixara de ter olho sobre os meus outros negócios; Interessava-me sobre tudo pelo meu pequeno rebanho de cabras, que começavam não só a ser grande recurso para mim na presente ocasião, mas que, para o futuro, me faziam esperar a economia do meu chumbo, da minha pólvora e das minhas fadigas, que sem ela teria que empregar da caça das cabras selvagens. 
                     Depois de madura deliberação, apenas achei dois meios de as abrigar de todo o perigo.  O primeiro era abrir uma outra caverna debaixo da terra e fazê-las entrar para ali todas as noites, e o segundo, fazer outros dois ou três pequenos recintos afastados uns dos outros, e o mais escondido possível, em cada um dos quais pudesse encerrar meia dúzia de cabras novas, afim de que se me acontecesse algum desastre ao rebanho em geral, me achasse em estado de o por novamente a pé em pouco tempo e com pouco trabalho; ainda que este último partido fosse de execução longa e penosa, pareceu-me contudo o mais razoável. Para realizar esse desígnio, pus-me a percorrer todos os recanto da ilha, e logo encontrei um sítio tão abrigado como desejava. Era uma grane clareira cercada de espesso bosque  e onde, como já disse, estivera a ponto de me perder um dia quando voltava da parte oriental da ilha. Oferecia uma espécie de parque com o qual a natureza fizera quase todas as despesas, e por consequência não exigia um trabalho tão rude como o que eu empregara nos outros meus recintos. Pus-me logo a trabalhar, e em menos de  um mês ajudara tão bem a natureza, que as minhas cabras, que estavam já sofridamente domesticadas, podiam estar em segurança neste asilo. 
                   Um único vestígio de um homem custou-me todo esse trabalho, e havia já dois anos que eu vivia nesses transes mortais e no acabrunhamento natural de um homem cercado de perigos, e que deve esperar cada dia ser feito em pedaços e comido antes do fim da noite. 
                  Depois de ter posto em segurança desta maneira parte da minha provisão viva, percorri toda a ilha para procurar um outro lugar próprio para receber igual depósito. Um dia, avançando eu para a ponta ocidental da ilha, mais longe do que o não fizera ainda, julguei avistar, duma altura em que estava, uma chalupa no mar; encontrara alguns óculos de aproximação num do baús que salvara do navio, mas por desgraça não tinha então comigo e não pude distinguir o objeto em questão, apesar de ter fatigado os olhos à força de ali os fixar. Assim fiquei na incerteza se era uma chalupa ou não, e isso fez-me tomar a resolução de nunca sair sem um dos meus óculos. 
                  Ao descer da colina, e ao achar-me num sítio onde nunca estivera, fiquei plenamente convencido de que um vestígio de homem não era coisa rara na minha ilha, e que se uma Providência particular me não tivesse lançado para o lado onde os selvagens nunca vinham, teria sabido que era muito frequente aos barcos do continente procurarem uma enseada nessa ilha, quando por acaso se achavam muito metidos pelo mar alto. Saberia mais que depois de algum combate entre barcos de diferentes povoações, os vencedores conduziam os seus prisioneiros à minha praia, para os matarem e os comerem como verdadeiros canibais que eram. 
                 O que me instruiu o que acabo de dizer, foi um espetáculo que me encheu de espanto e terror; descobri a terra semeada de crânios, mãos, p[és e outras ossadas humanas; notei ali os restos duma fogueira, e um banco cavado na terra, em forma de círculo, onde certamente esses abomináveis selvagens se tinham colocado para fazer o seu espantoso festim. Esta vista cruel suspendeu por algum tempo a ideia dos meus próprios perigos; todas as minhas apreensões  eram abafadas pelas impressões de que me dava essa brutalidade infernal. Ouvira falar disso muitas vezes, e contudo a vista não me chocou com isso menos do que se a coisa me não entrasse na imaginação; desviei os olhos desses horrores, senti cruéis pensamentos, e perderia os sentidos se a natureza não me tivesse aliviado por um vômito muito violento; quando voltei a mim, não me pude resolver a ficar nesse lugar e voltei para minha casa. 
                 Quando me afastei desse horrível lugar, parei de repente, como um homem fulminado pelo raio; voltando a mim , levantei os olhos ao céu e com o coração enternecido, com os olhos cheios de lágrimas, dei graças a Deus porque ele me fizera nascer numa parte do mundo estranha a tais abominações. 
                 Com a alma cheia desses sentimentos, voltei para casa mais sossegado do que nunca estivera, porque me parecia certo que esses miseráveis nunca desembarcavam na ilha com o desígnio de nela fazerem algum saque, não tendo necessidade de ali procurar alguma coisa, pensando no qual estavam talvez confirmados pelas carreiras que podiam ter feito nas florestas. Passara já dezoito anos  sem encontrar ninguém, e podia esperar passar ainda outros tanto com a mesma felicidade, contanto que não me descobrisse eu próprio, o que não era de modo algum a minha intenção, a não ser que achasse ocasião de travar conhecimento com uma melhor espécie de homens do que de canibais.  Contudo, o horror que me ficou do seu brutal costume, lançou-me uma espécie de melancolia que me teve durante dois anos encerrado nos meus próprios domínios, quero dizer com isto "o meu palácio, a minha casa de campo, e o meu novo recinto nos bosques"; Não ia a este último lugar, que era a residência das minhas cabras, senão quando absolutamente necessário. Não cuidava também em ir examinar o estado do meu barco, e resolvi antes construir um outro; porque dar a volta ao rio com o antigo, afim de aproximar da minha habitação, não devia pensar nisso, pois que era o verdadeiro meio de encontrar no mar esses abomináveis selvagens e de lhes cair nas mãos.

                  Enfim, o tempo e a certeza em que estava de que não corria risco algum de ser descoberto, estabeleceram-me pouco a pouco no meu modo de viver ordinário, a não ser o estar eu sempre de olho à mira mais do que antes, e que não disparava já a minha espingarda  com medo de não excitar a curiosidade dos selvagens, se por acaso se achassem na ilha. Era por consequência uma grande felicidade para mim o ter-me fornecido dum rebanho de cabras domesticadas, e de não ser constrangido a ir à caça das cabras selvagens.  Se apanhava algumas de vez em quando, era por meio de redes e armadilhas. Nunca saía, contudo, sem a minha espingarda, e como eu salvara três pistolas do navio, tinha sempre duas pelo menos que eu trazia ao meu cinto de pele de cabra. 
                  Ajuntava-lhe ainda uma das minhas grandes facas que afiara. Imagina-se facilmente que nas minhas saídas tinha  are temíveis, se acrescentarem à descrição que já fiz acima da minha figura, as duas pistolas e esse grande sabre que me pendia ao lado em bainha. Desde então, considerando a minha condição tranquilamente, comecei a achá-la suportável.  Ainda que poucas coisas me faltassem, notei, contudo, com tristeza que meus terrores e os cuidados que tivera com a minha conservação, tinham esmagado a minha sutileza na procura das coisas que me podiam ser úteis; estes receios tinham-me feito desprezar, entre outras, uma feliz ideia que me ocupara outrora, a saber: secar uma parte do meu grão e torná-lo próprio para fazer cerveja. Este projeto parecia-me extravagante a mim mesmo, por causa do que me faltava para chegar ao meu fim; não possuía tonéis para conservar a cerveja, e, como já disse, empregara trabalho de muitos meses para construir um sem resultado; de mais a mais, não tinha lúpulo para a tornar susceptível de se conservar para a fazer fermentar, e caldeirão para a fazer ferver. Não obstante todos esses inconvenientes, estou persuadido que sem as apreensões que me tinham causado os selvagens, teria empreendido essa fabricação, e talvez com resultado, pois eu raras vezes abandonava um projeto quando uma vez me entrara na cabeça e que começara a por mãos a ele. 

                 Mas agora o meu espírito inventivo voltara-se todo para o outro lado, e pensava noite e dia no meio de destruir alguns desses monstros no meio dos meus divertimentos sanguinários, e de salvar as suas vítimas, se fosse possível. 
                Um dia, distingui na praia uns seis barcos; os selvagens já estavam em terra e fora do alcance da minha vista. Sabia que vinham ordinariamente cinco ou seis em cada barco, e por consequência o seu  número transtornava todos os meus projetos. Que possibilidade havia para um homem só de combater com uns trinta? Contudo, depois de ter estado irresoluto durante alguns minutos, preparei tudo para o combate; escutei atentamente se ouvia algum ruído; depois, deixando as minhas duas espingardas ao pé da escada, coloquei-me de maneira que a minha cabeça não excedia o alto da escada. Dali avistei, por meio do meu óculo, que eram trinta,pelo menos, que tinham acendido lume para preparar o seu festim, e que dançavam em volta da fogueira, com mil posturas e mil gestos extravagantes, segundo o costume do país. 
                 Um momento depois, vi-os tirarem dum barco dois miseráveis para os fazerem em pedaços.  Um dos dois caiu logo por terra, desancado, creio eu, por uma pancada de massa ou dum sabre de madeira; e sem demora, dois ou três desses carrascos se lançaram sobre ele, abriram-lhe o corpo e prepararam todos os pedaços para sua infernal cozinha; enquanto que a outa vítima estava ali ao pé, esperando que chegasse a sua vez de ser imolado. este desgraçado achando-se então um pouco em liberdade, a natureza inspirou-lhe alguma esperança de se salvar, e desatou a correr com todo a ligeireza imaginável, em linha reta para o meu lado, quero dizer para o lado da praia que se dirigia para a minha habitação. 
                 Confesso que fiquei terrivelmente aterrado ao vê-lo enfiar por esse caminho, sobretudo porque esperava que todo o bando  o perseguiria, e esperei vê-lo verificar o meu sonho procurando um asilo no  meu bosque, sem ter ocasião de crer  que o resto do meu sonho se verificaria, também, e que os selvagens ali o não achassem. Fiquei, todavia, no mesmo lugar, e sosseguei logo, ao ver que apenas três homens o perseguiam, e que ele ganhava consideravelmente terreno sobre eles, de maneira que devia escapar-lhes indubitavelmente se ele sustentasse essa carreira somente durante uma meia hora. 
                 Havia na praia, entre ele e o meu castelo, uma pequena baía onde ele devia ser apanhado necessariamente, a não ser que a atravessasse a nado; mas quando ele ali chegou, não hesitou e, apesar da maré estar  então muito cheia, deitou-se nela, galgou a outra margem nuns trinta impulsos, o máximo, e depois tornou a correr com a mesma força de antes. Quando os seus inimigos chegaram ao mesmo sítio, notei que apenas dois sabiam nadar; e que o terceiro, depois de se ter demorado um pouco na margem, voltava lentamente para o lugar do festim, o que não era felicidade pequena para aquele que fugia. Observei ainda que os dois que nadavam levavam a atravessar essa água o dobro do tempo que o seu prisioneiro gastara. Vi então que era esta uma ocasião favorável para arranjar um companheiro e um criado, e que eu era chamado evidentemente pelo céu para salvar a vida desse pobre infeliz. Nesta persuasão, desci precipitadamente do rochedo para pegar nas minhas espingardas, e subindo com o mesmo ardor, avancei para o mar; não tinha muito que andar e depressa me lancei entre os perseguidores e o perseguido, tratando de lhe fazer entender pelos meus gritos que parasse. Fiz-lhe ainda sinal com a mão; mas creio que a princípio tinha tanto medo de mim como daqueles de quem fugia. Avancei com tudo sobre eles a passos lentos, e em seguida, lançando-me bruscamente sobre o primeiro, derrubei-o com uma coronhada; antes queria desfazer-me deles desta maneira do que fazendo fogo sobre eles, pois receava ser ouvido pelos outros, apesar disso ser muito difícil a tão grande distância, e também impossível aos selvagens saber o que significava esse ruido desconhecido. O segundo, ao ver cair o seu camarada, parou assustado; continuei a ir direto a ele, mas ao aproximar-me vejo-o armado de um arco, cuja flecha ele apontava para mim; o que me obrigou a antecipá-lo, e lanceio por terra, morto ao primeiro tiro. Quanto ao pobre fugitivo, ao ver seus inimigos fora de combate, estava tão aterrado com o fogo e com o ruido que ouvira, que parou e ficou imóvel no mesmo lugar, e eu vi no seu ar desvairado mais vontade de fugir imediatamente do que aproximar-se. Fiz novamente sinal que vesse ter comigo; dá alguns passo, depois para ainda e continua  esse mesmo manejo durante alguns momentos. Imaginava ele sem duvida que ia ser preso outra vez, e ser morto como os seus dois inimigos. Enfim, depois de lhe ter feito sinal pela terceira vez, com a maneira mais própria para sossegar, aventurou-se a vir ter comigo, pondo-se de joelhos a cada dez ou dose passos para me testemunhar o seu reconhecimento. 
                  Durante todo esse tempo eu sorria-lhe o mais graciosamente possível. Finalmente, quando chegou perto de mim, deitou-se-me aos meus pés, beijando o chão, pegou um dos meus pés e o pôs na sua cabeça, para me fazer compreender  sem duvida que me jurava fidelidade e que me prestava homenagem na qualidade de meu escravo. Levantei-o, fazendo-lhe carícias para o animar cada vez mais; mas o negócio não estava ainda acabado; vi logo que o selvagem que eu fizera cair com uma coronhada não estava morto, e que apenas estava atordoado; fi-lo notar ao meu escravo que, em resposta, pronunciou algumas palavras que não entendi e que não deixaram, contudo, de me encantar, como sendo o primeiro som de uma voz humana que ouvia depois d vinte e cinco anos. Mas não era tempo ainda de  me abandonar a esse prazer; o selvagem em questão já recobrara bastante força para se pôr em pé, e o terror recomeçou a aparecer no ar do meu escravo; todavia, como me viu com ar de descarregar a minha outra espingarda sobre esse desgraçado, fez-me entender, por sinais, que desejava que eu lhe emprestasse o meu sabre, o que lhe concedi. Mal pegara nele, lançou-se sobre seu inimigo e cortou-lhe a cabeça de um só golpe, tão depressa e tão habilmente como o poderia fazer o mais hábil carrasco de toda a Alemanha.  Era, contudo, a primeira vez na sua vida que ele vira uma espada, a não ser que se queira dar esse nome aos sabres de madeira que são armas ordinárias desses povos. Contudo, soube depois que esses sabres são de uma madeira tão dura e tão pesada, e que eles sabem tão bem aguçá-los, que de um só golpe fazem voar uma cabeça de cima dos ombros. 

                  Depois de feito essa expedição, vem ter comigo aos saltos e às gargalhadas para celebrar o seu triunfo; em seguida põe o sabre e a cabeça do selvagem aos meus pés. O que o embaraçava extraordinariamente, era a maneira como eu matara o outro Índio a tão grande distância, e, mostrando-mo, pediu-me, por sinais, licença para vê-lo de perto.  Ao aproximar-se, a sua surpresa aumenta; observa-o, vira-o, ora de um lado e ora de outro; examina a ferida que a bala fizera exatamente no peito, e que não parecia ter sangrado muito, porque o sangue espalhara-se para dentro. Depois de ter parado muito tempo a considerá-lo, veio ter comigo com o arco e as flechas do morto; e eu, resolvido a ir-me embora, ordenei-lhe que me seguisse, fazendo-lhe entender que receava que os selvagens fossem logo seguidos dum maior número.  Fez-me depois sinal de que ia enterrar os dois que nós tínhamos morto, com medo de que os seus companheiros, ao verem esses corpos conseguissem descobrir-nos. Deixei-o fazer isso, e num instante tinha aberto duas covas na areia, onde enterrou a ambos. Tomada essa precaução, levei-o comigo, não para meu palácio, mas para a gruta que eu tinha na ilha; o que desmentiu o meu sonho que designara o meu bosque para asilo do meu escravo. Foi nesta gruta que eu lhe dei pão, um cacho de uvas secas, e água de que ele precisava principalmente, por estar muito sequioso pela fadiga de tão longa e tão rude carreira. Fiz-lhe sinal para ir dormir, mostrando-lhe um monte de palha de arroz, com cobertor que muitas vezes me serviu de leito a mim mesmo. 
                 Era um rapazola bem reforçado, de vinte e cinco anos, pouco mais ou menos; era perfeitamente bem feito; todos os seus membros, sem serem muito grossos, anunciavam  um homem hábil e robusto; o seu ar másculo apresentava sintoma algum de ferocidade; pelo contrário, via-se nas suas feições, sobretudo quando sorria, essa doçura e esse agrado que é particular aos europeus. Não tinha os cabelos semelhantes à lã frisada, mas sim negros e compridos; a sua fronte era grande e elevada, aos seus olhos brilhantes e cheiros de fogo. A sua tês não era negra, mas muito acobreada; sem ter nada dessa desagradável cor estanhada dos habitantes do Brasil e da Virgínia, aproximava-se duma ligeira cor de azeitona, de que não é fácil dar uma ideia exata, mas que me parecia ter alguma coisa de agradável. Tinha o rosto redondo e o nariz bem feito, a boca bonita, os lábios delgados, os dentes bem enfileirados e brancos como marfim. Depois de ter mais dormitado que dormido durante meia hora, acordou e saiu da gruta para vir ter comigo; porque neste intervalo eu tinha ido mungir as minhas cabras, que estavam num recinto ali perto. Veio correndo para mim, lançou-se a meus pés com todos os sinais de uma alma verdadeiramente reconhecida, renovou a cerimônia de me jurar fidelidade, pondo o meu pé sobre a sua cabeça.  Eu compreendia a maior parte das coisa pelos seus gestos, e fiz tudo o que podia para fazê-lo entender  que estava contente com ele. 
                  Em pouco tempo, comecei a falar-lhe, e ele, por seu turno, aprendeu a falar comigo; primeiro ensinei-lhe que ele se chamava "Sexta-feira", nome que lhe dei em memória do dia em que caíra em meu poder. Ainda lhe ensinei a chamar-me de seu "Senhor", e a dizer a propósito "sim" e "não". Em seguida dei-lhe leite num vaso de barro; bebi primeiro, e molhei nele o pão; tendo-me imitado, fez-me sinal que gostara. Fiquei com ele toda a noite seguinte na gruta; mas apenas o dia despontou, fiz-lhe compreender que me seguisse, e que eu lhe daria vestuário, o que pareceu regozijá-lo, porque estava completamente nu. Ao passar pelo sítio onde enterrara os dois selvagens, mostrou-mo assim como os sinais que ali deixara para o reconhecer, manifestando a ideia de os desenterrar e de os comer. Tomei ar de Zangado; exprimi-lhe o horror que tinha de tal pensamento; e ordenei-lhe que se afastasse desses cadáveres, o que ele fez imediatamente. Levei-o em seguida ao alto da colina, para ver se os inimigos tinham partido, e com o meu óculo não descobri senão o lugar onde tinham estado,
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BREVE  BIOGRAFIA  de Daniel Defoe 
                 Daniel Defoe, jornalista e escritor inglês, nasceu em Londres por volta de 1660 e  morreu em 1731. Escreveu toda a espécie de obra em prosa e verso: histórias, biografias, romances, polêmicas políticas e religiosas, sátiras e outros folhetos e poemas. A sua obra mais célebre é "Robinson Crusoé", 1719. Publicou mais: "The Apparition of Mrs. Veal" (A aparição da Senhora Vitela), 1706; "Memoirs of a Cavalier" (Memórias de Um Cavaleiro), 1720; "Captain Singleton", 1720; "Moll Flanders", "Cartouche", Colonei Jacque", 1722; "John Sheppard", 1724; "Journal of the Plaque Yer" (Diário do ano da peste), 1722; "Account of Jonathan Wild" (Relatório de Jonathan Wild), 1725. 
Nicéas Romeo Zanchett 



quarta-feira, 3 de julho de 2013

A DIVINA COMÉDIA - Por Dante Alighieri




A DIVINA COMÉDIA 
Por Dante Alighieri
                  Considerada uma das principais obras literárias de todos os tempos, a Comédia de Dante Alighieri é um poema alegórico em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso; composto de cem atos em tercetos (cada parte com 33 cantos), e mais um de abertura, formando o número de 100 que na época era considerado um símbolo de perfeição. Escrita em italiano, iniciada provavelmente em 1307 e concluída em 1321. Narra uma odisseia pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. Com muita habilidade, Dante, o personagem da história, descreve cada etapa da viagem com detalhes quase visuais; é guiado pelo inferno e purgatório pelo poeta romano Virgílio, e no céu por Beatriz, musa preferida do autor. 
                  Sua forte mágoa pela morte de Beatriz e o anseio de exaltar-lhe as virtudes, a adversão pelas injustiças e violências a que assistira, quando estava em Florença e durante o exílio, e mais o desejo de indicar aos homens o caminho do bem e do reto governo político, apontando-lhes as penas e a bem-aventurança da vida ultraterrena, induziram Dante Alighieri a dedicar-se, por mais de dez anos, a uma obra sobre-humana e eterna, a que chamou, modestamente, "Comédia", a fim de indicar o estilo em que fora escrita, e que, somente mais tarde, graças à iniciativa do seu primeiro grande comentador, Giovanni Boccaccio, se ornamentou com o objetivo de "Divina"; divina no significado de poema de argumento sagrado, porque, nela, Dante imaginou uma viagem através do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, mas divina também porque, além de encerrar em si a soma de conceitos filosóficos e morais, que constituem a base da vida cristã, a Comédia possui páginas de elevadíssima qualidade poética, entre as mais belas da poesia mundial.
                  Antes de Dante, outros escritores haviam tratado semelhante argumento (recordamos, por exemplo, a descrição do Averso, na Eneida de Virgílio e, na Idade Média, as obras de Giacomino da Verona e de Bonvesin de la Riva) e naqueles autores  dante, naturalmente, se inspirou, superando-os, todavia, pela vastidão e complexidade de sua criação. Com os escritores medievais, acima de tudo, ele teve em comum, a finalidade de instruir os leitores e dar-lhes ensinamentos morais por essa razão, dada a profunda cultura de Dante que, embora fazendo obra de poesia, jamais esqueceu os estudos a que se dedicara por tantos anos, a Divina Comédia encerra em si páginas de dificílima compreensão, para quem não conheça a História da  Antiguidade e da Idade Média, além do pensamento dos filósofos e dos teólogos que viveram antes e durante o tempo de Dante. E disso derivou surgir uma enorme multidão de curiosos, de estudiosos, desde os tempos de sua primeira publicação até aos nossos dias; todos eles empenhadíssimos em explicar e comentar o poema. 
                    Iniciada em 1307, ou talvez em 1310, depois da queda de Arrigo VII, a Divina Comédia foi, a princípio, concebida pelo poeta em proporções mais modestas; ampliada, a seguir, com acréscimo de novos episódios, ela se nos apresenta como uma das obras mais vistas que jamais foram escritas em versos;  subdividida em três partes (Inferno, Purgatório e Paraíso), cada uma em 33 cantos e cerca de 150 versos, em terceira rima, de tercetos concatenados, mais um canto de prelúdio, dedicado ao inferno, o poema é, todavia, unitário, raramente revela prolixidade, e,  em todas as partes, demonstra um cuidado minucioso de parte de seu autor. 
                    Em conjunto, o Poema compreende 100 canto, o quadrado de 10, número perfeito, segundo Dante. Os 100 cantos têm 14233 versos, a saber: o Inferno - 4720, o Purgatório - 4755, e, o Paraíso - 4758. 
                   Imaginando que sua viagem teve início na primavera do ano 1300 (naquele ano ocorreu o Jubileu e, ao escolher aquela data, compreende-se que o Poeta quis dar a entender haver sido tocado pela Graça Divina), narra Dante que, encontrando-se numa selva escura e ao ver-se atacado por uma pantera (ou onça), por uma leão e uma leoa, apareceu-lhe inesperadamente Virgílio, o qual oferecendo-se-lhe como guia, convence-o a acompanhá-lo através do Inferno, do Purgatório e do Paraíso Terrestre, onde lhe virá ao encontro Beatriz, para conduzi-lo à presença de Deus. Somente assim poderá o Poeta salvar-se das insídias da selva (que simboliza os erros em que Dante incorrera em sua mocidade, e, sobretudo, conseguirá fugir das feras, as não são outra coisa senão os símbolos dos três pedados que mais afligem o homem: a avareza, a luxúria e a soberbia. 

                   E começa, assim, a grande aventura. O Inferno, segundo a concepção dantesca, abre-se qual uma voragem, até ao centro da terra. Rios de danação, como o Aqueronte, o Flegetone, e o Estige, envolvem-no em suas furiosas correntes, muralhas altíssimas, vales pedregosos, rochedos intransponíveis, separam um do outro os nove  "círculos", verdadeiros giros, que se propendem para o abismo, no qual as almas penadas, os danados, pagam seus pecados, enquanto miríades de demônios e de criaturas monstruosas, que Dante muitas vezes vai buscar na mitologia pagã, circulando pelas espessas trevas que recobrem seu reinado pavoroso, fazem com que os pecadores não tenham, por um átomo sequer, qualquer repouso.  Mimos, o antigo rei de Creta, célebre pelo seu legendário senso de justiça, é o guardião geral do Inferno, e dante, com severo julgamento, imagina que ele deva ter distribuído as penalidades segundo a lei do "contrapasso" ou de "Talião". 
                     Acrescenta, outrossim, grande dramaticidade à visão dantesca o fato de que o Poeta não titubeia em sitar, entre os danados, personagens conhecidos, mortos naqueles anos ou célebres na antiguidade, cuja evocação imprime um tom fortemente realístico à fantástica descrição do Inferno. Primeiro, entre todos, Dante descreve os indolentes, fracos e egoístas, que coloca no anti-inferno, como seres arrastados por um vento turbilhonante, sempre perseguindo um ponto e jamais alcançado, para que eles se recordem da inconstância e da incerteza de opiniões demonstradas outrora. Seguem-se os pagãos e os não batizados, que, não tendo conhecido a palavra de Cristo, não merecem gozar a suprema ventura de visão de Deus, mas nem a dor de sofrer qualquer punição infernal. E Dante, à mais legítima tradição evangélica, situa-os no Limbo, um lugar aprazível, em contraste com a paisagem que o circunda, mas do qual a visão paradisíaca está excluída. 
                      Atormentada e desesperada, desfila ante os olhos de Dante e Virgílio a longa legião de condenados que enlanguescem nos nove círculos infernais: primeiro, os luxuriosos, arrastados no segundo círculo por um vendaval que lhes recorda a vida perturbada pelas paixões que os dominavam; depois os glutões, no terceiro círculo, mergulhados na lama e obrigados a experimentar-lhe o nauseabundo sabor, como lembrança dos apetitosos pratos, sempre cobiçados durante a vida; os avaros e os pródigos, no quarto círculo, são, ao invés, imaginados por Dante carregando enormes  bloco de pedra, para que se lembrem de que, em outros tempos, demasiados os primeiros e bem pouco os segundos, amarram os bens terrenos, pois fizeram um mau uso deles. Finalmente o Poeta se guia, embora as fúrias infernais tentem impedir-lhes o acesso, entram na cidade de Dite, onde são castigados os pecados mais graves.  Aqui, Dante pôs os hereges (Isto é, aqueles que se afastaram dos retos ensinamentos doutrinários da "Igreja") e o condena a ficarem enterrados vivos, sem sepulcros chamejantes.
                     Entre os hereges, surgindo das sepulturas, aparece a dante um "condotiere" gibelino, o soberbo Farinata degli Uberti, e Cavalcante de Cavalcanti, pai daquele Gudi dei Cavalcanti, que foi amigo de Dante e seu companheiro de poesia. No primeiro giro do sétimo círculo, pelo Minotauro, são castigados aqueles que exerceram violência contra o próximo (entre os quais Danta põe os tiranos da antiguidade e alguns bandidos e tiranetes da Idade Média), que, vigiados incessantemente pelos centauros, estão mergulhados num rio de sangue fervente. No segundo giro do sétimo círculo, uma horrível visão espera o Poeta: aqui, realmente, são punidos os suicidas, que, por haverem desprezado a vida, o sublime dom do Senhor, foram transformados em árvores e em arbustos, (justa condenação para quem, como eles, não souberam enfrentar todas as  responsabilidades inerentes ao ser humano). No oitavo círculo, dividido em dez bolgie, são punidos em dez diferentes maneiras os fraudulentos; e, entre estes, os sedutores, os aduladores, os simoníacos, os adivinhos, os trapaceiros, os hipócritas, os maus conselheiros. Entre estes últimos, encerrados numa pequena chama bifurcada, estão Ulisses e Diomedes que, como todos sabem,sugeriram a tomada de Troia mediante ardil. 
                     Numerosos são os episódios que enriquecem os últimos cantos do inferno, porque, mais nos avizinhamos do centro da terra, onde Lúcifer, o rei das trevas, pontifica num mar de gelo, que é a eterna condenação para traidores, e, mais os pecados que se castigam são graves, mais as penas são impiedosas, mas fantástica e sugestiva se torna a descrição de Dante. 
                     Saídos, por fresta, do Inferno, os dois poetas encontram-se no hemisfério oposto àquele por onde Dante entrara;  a porta do Inferno se encontrava, na verdade, nas proximidades de Jerusalém, no hemisfério boreal, e agora, voltando novamente para a luz, ambos estão na praia de uma ilha desconhecida, situada no hemisfério austral, num ponto indeterminado do oceano. A hora matutina, o ar tépido, o encantamento da natureza, tudo faz prever uma viagem bem mais serena do que aquela que eles haviam concluído pouco antes. No Purgatório, de fato, onde reina a certeza de poder um dia subir à presença de Deus, tudo é alegria e serenidade, e  já dos primeiros cantos, que descrevem o encontro com o nobre ancião que vigia o local, Catão, além da chegada de um grupo de almas penitentes, sobre um barco guiado por um anjo, temos a intuição de que, no Purgatório, se ainda penas existem, elas devem ser bem mais brandas, despidas da crueldade verificada no Inferno. No ante-purgatório, à espera de poder, finalmente, ascender ao Purgatório, para pagar seus próprios pecados, Dante encontra o bando dos excomungado e dos negligentes nas práticas pias; entre eles, o Poeta escolhe, para conversar, Manfredi e Sordello da Goito, poetas lombardo, conhecido pelas suas poéticas invectivas contra os pusilânimes príncipes italianos. 
                  Em seguida, na valeta dos príncipes, também situada no ante-purgatório, Dante avista outro personagem seu conhecido: Corrado Malaspina, pertencente a nobre família em cujo lar o Poeta estivera muitas vezes, e compreende-se  como o Florentino, tecendo-lhe elogios, tenha desejado demonstrar sua gratidão pela generosidade de seus anfitriões de outrora. 
                  Apresentando-se as sete cornijas sobre as quais as almas purgam seus pecados, dante, reconhecendo humildemente ser um pecador e culpado de grandes e pequenas negligências, propõe a si mesmo a viagem com espírito de penitência, e, por esse motivo, conta que um anjo lhe imprime na testa sete P, para significar os pecados de que se manchou. À saída de cada cornija, um ajo apagará um desses sinais, de modo que, ao fim da viagem, o Poeta poderá considerar-se, finalmente, lavado de toda culpa. Os castigos são Igualmente escolhidos segundo a lei de Talião, mas a eles se  acrescentam uma pena particular, que bem revela o quanto Dante houvesse não só assimilados os livros evangélicos, mas também o quanto amasse a escultura e a pintura; em cada círculo, realmente, encontramos esculpidos na rocha exemplos extraídos do Antigo e Novo Testamento que ilustram as virtude opostas aos pecados que se pagam naquele recinto. E de novo desfilam diante dos olhos dos dois poetas as teorias dos penitentes; na primeira cornija, os soberbos grimpam o hirto declive, sob o peso de enormes pedras; na segunda, os invejosos jazem de pálpebras costuradas; na terceira, os iracundos se debatem num nevoeiro de fumaça (e aqui Dante situa o poeta Marco Lombardo, com o qual fala de discórdias e erros verificados entre os príncipes e a Igreja); no IV degrau, os preguiçosos correm sem cessar, lembrando-se reciprocamente os episódios evangélicos nos quais se exalta a solicitude e castiga-se a preguiça; na V, avaros jazem de bruços; na VI, os glutões padecem fome (entre estes o florentino Forese Donati, amigo de Dante); na VII, os luxuriosos caminham no fogo (entre ele o poeta bolonhês Guido Guinizelli). Depois, finalmente, Dante se encontra no Paraíso Terrestre, no qual encontra sua meiga figura feminil de Matelda. 
                       É chegado para Virgílio o momento de deixá-lo, porque, sendo poeta pagão, ele deve retornar ao Limbo, mas outra criatura, Beatriz, vai ao encontro do Poeta, na primaveril paisagem do Paraíso Terrestre e, radiante de luz divina, pega-lhe a mão.
                     Com ela, o Poeta ascende os nove céus subjacentes ao Empíreo; começa para Dnte a derradeira viagem, aquela que atravessa o Paraíso. O Poeta, com raríssima perícia, consegue dar vasão a seus primorosos versos até descrever-nos maravilhosas paisagens, climas e cores de um mundo ulta-terreno. É esta, a parte do poema, que, dado o argumento, talvez melhor põe em realce a qualidade poética de Dante; a outra parte, sendo muito rica de temas teológicos e filosóficos, é também aquela de mais difícil compreensão. Imaginando-se tocado pela Graça Divina, e, por isso, em condições de compreender verdades que aos homens obliterados pela pecado não é facultado conhecer, Dante dirige inúmeras perguntas a Beatriz e aos Bem-aventurados  que ele vai encontrando nos nove céus; deles, sempre recebe doutas respostas, completamente em acordo com os principais fundamentos teológicos. Beatriz explica-lhe o princípio que preside a ordem do Universo, feito por Deus para que todas as coisas criadas cumpram sua finalidade, a teoria do livre arbítrio e as questões relativas ao voto. 
                 
    
                      Finalmente, no Paraíso - canto XVI - céu de Marte -, Dante acompanhado de Beatriz encontra-se com Cacciaguida, trisavó do Poeta. No céu de Saturno - Canto XXI - Dante vê uma escadaria luminosíssima, pela qual sobem e descem côrtes de almas resplandescentes. No Canto XXXI - Dante chega ao Empíreo, em companhia de São Bernardo, seu último guia, onde avista uma cândida rosa formada pelos Bem-aventurados e, entre estes, lhe aparece  a luminosa visão da Virgem  Maria; a paisagem torna-se sempre mais fulgurante de claridade, e as almas bailando, as côrtes dos anjos, os cânticos que ressoam cada vez mais suavemente, advertem Dante de que chegara o momento tão almejado; o Empíreo, entre jorros de luz, onde palpitam quais chispas maravilhosas, os anjos; depois, bem acima dele, a fulgurante luz , em forma de três círculos de fogo, a Santíssima Trindade.  Aqui termina o poema. Iniciado com a descrição de um mundo tenebroso, imerso no pecado, ele culmina com a visão de Deus, Rei da luz. 
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OBSERVAÇÕES  FINAIS
                       Nunca, poeta algum, com exceção de Dante, conseguiu abraçar, com sua fantasia, um mundo tão vasto, e tornar-se assim, o expressivo poeta do pecado e admirável cantor da Graça Divina. 
                       Dante viveu entre 1265 e 1321, portanto, em plena Idade Média. Era uma época conturbada onde, em Florença, brigava-se facilmente; mal  eram expulsos os chefes de uma facção de bandidos, os adversários lhes desmantelavam as casas - (como acontece hoje em comunidades de baixa renda); quanto à burguesia, que nesta época era constituída principalmente por banqueiros e comerciantes, não pensava em combater e mudar a situação, mas apenas ganhar e acumular dinheiro - (isso continua ocorrendo em nossos dias); as residências e lojas dos ricos eram protegidas com torres e muros de segurança - (nos nossos dias, surgiram os condomínios fechados; verdadeiras fortalezas contra a bandidagem). 
                        Nos longos anos de exílio, poucos dos nobres que acolheram Dante deram valor a seu trabalho poético. Um desses homens foi Guido Novello da Polenta, em cujo palácio em Ravena, o poeta concluiu a obra que as gerações seguintes consagrariam como uma das maiores peças literárias de todos os tempos: a "Comédia. 
                        Dante era um estudioso de teologia e seu trabalho mostra sua fidelidade ao cristianismo e crença nos Evangélios, onde foi buscar sua inspiração. Viveu numa época em que a ciência ainda não pensava no Big-Bang e a filosofia tinha uma visão restrita e não conhecia a metafísica. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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