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terça-feira, 2 de setembro de 2014

AS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Por Santo Agostinho
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Santo Agostinho, o maior dos doutores da Igreja latina, nasceu na África Setentrional a 13 de Novembro de 354 d.Cristo e morreu  em Hipo -(Numídia)-  a 28 de Agosto de 430. Recebeu a sua primeira educação em Cartago, e adquiriu fama como homem de leis e grande orador. Nos primeiros anos  pertenceu à seita dos Manicheus,  apesar do ensino cristão de sua mãe, Santa Mônica; mas aos trinta anos de idade o bispo Ambrósio, em Milão,  converteu-o ao cristianismo. Em 396 foi congregado bispo de Hipo na África, onde esteve até morrer. A ele se deve, principalmente, a forma atual da doutrina cristã. As suas principais obras foram: Confissões, 397 e A Cidade de Deus escrita em 426. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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CONFISSÕES 
Por santo Agostinho
        Como chegou à juventude e entregou-se aos vícios 
                Quero lembrar-me das minhas fealdades passadas, e das carnais torpezas da minha alma; não porque as ame, mas para vos amar vós, meu Deus. Por amor do vosso amor o faço assim, trazendo à memória meus torcidos caminhos, em amargura da minha alma; para que vós me sejais doce, doçura verdadeira, que não engana, doçura ditosa e segura, que me congregastes da divisão, pela qual sou dividido em pedaços. Porque apartando-me de vós, que sois sumo bem para muitas coisas, me tornei em nada. Ardia eu algum dia com desejo de sacudir-me de saciar-me nestas coisas baixas, querendo nadar em vícios e tenebrosos amores: e a minha formosura se destruiu e corrompeu, e me desfez diante dos vossos olhos, agradando-me a mim, e querendo contentar os olhos humanos. 
                Que outra coisa me deleitava, senão o amar e ser amado? Mas não usava eu nisto do modo devido, guardando os termos do amor puro e nobre, senão que subiam umas névoas do lodo da minha carnal concupiscência e dos esconderijos da mocidade, que ofuscavam e escureciam o meu coração em tal forma, que não se conhecia a serenidade do amor pela escuridade do mau apetite.  Ardia um e outro confusamente; e arrebatando a minha fraca idade por uns despenhadeiros de apetites, me submergiam em pélago de pecados...
                Aonde estava eu? Quão longe andava desterrado dos deleites da vossa casa no ano dezesseis da idade da minha carne, quando esta tomou em mim o cetro e lhe rendi as mãos com a loucura da minha lasciva, permitida pela torpeza humana e ilícita pela vossa  Lei santa. Não tiveram cuidados os meus, vendo-me cair, de levantar-me com o remédio do lícito matrimônio; mas cuidavam em que fosse grande Orador, para que com minhas artificiosas palavras persuadisse os homens. 
                 
Das jornadas que fez por motivo dos seus estudos
                 Naquele ano deixei de estudar alguns dias, vindo da cidade de Madauro (diocese), onde havia ido para estudar a Oratória, enquanto ordenavam mandar-me a Cartago, cidade que estava algum tanto mais remota que a primeira; a cujo caminho e empresa eu me dispunha com mais ânimo que dinheiros, por ser meu pai um pobre cidadão da cidade de Tagaste (Numídia). Mas a quem conto eu, Senhor, estas coisas? Não a vós, meu Deus; mas conto-as na vossa presença à minha geração, que é o gênero humano, que vir este meu livro. Porém, para que digo eu isto? Para que eu, e os que isto lerem saibamos de quanta profundidade vos devemos invocar. Mas que coisa há tão próxima, e propínqua como os vossos ouvidos, se o coração vos confessar, e a vida for conforme à fé. Quem havia que não desse louvor a meu pai, porque gastava comigo mais do que permitia a sua possibilidade, dando-me tudo o que era necessário para o meu estudo, sendo grandes os gastos, que nisto se faziam, em um país tão remoto; não se praticando semelhante diligência e cuidado na provisão dos filhos de outros mais ricos que meu pai; mas não se fatigava ele muito em como havia de crescer, e aproveitar no vosso serviço, nem tinha muito cuidado da minha castidade; mas todo seu cuidado era, que eu fosse sábio e discreto; ou para melhor dizer, apartado de vos servir a vós, meu Deus, que sois único e verdadeiro Senhor do vosso campo, que é o meu coração.
                  Mas naquele décimo sexto ano, que não estudei, por causa da necessidade em que estava a casa de meu pai, enquanto me aparelhavam as coisas necessárias para o estudo, estive em casa, dando-me ao ócio, onde cresceram tanto os espinhos dos vícios sobre mim, que me cobriram a cabeça e não havia mão que os arrancasse. Antes vendo-me meu pai nos banhos rodeado da inquieta juventude, como quem já folgava, com a esperança de ter de mim netos, o disse a minha mãe, alegrando-se com a embriaguez das coisas deste mundo, com que os homens se esquecem de seu Criador, e amam a criatura em vez de amar-vos a vós. Bem invisível, pervertendo o amor da sua perversa vontade abatida das coisas baixas. Mas no peito de minha mãe já vós haveis começado a edificar o vosso templo e morada; porque meu pai ainda era catecúmeno, e novo nas vossas coisas. De sorte que minha mãe, vendo isto, se alegrou com um pio tremor; e ainda que eu não era naquele tempo muito fiel, temeu ela os meus torcidos caminhos, por onde caminham os que vos não querem ver e vos voltam as costas. 
                Ai de mim! Atrevo-me a dizer que vós, Deus meu, vos caláveis andando eu longe de vós. Assim caláveis, e não me faláveis. Mas de quem eram senão vossas aquelas palavras, que cantastes aos meus ouvidos, por minha mãe,fiel serva vossa? ainda que nada delas entrava no meu coração para o por obra. A sua vontade era que eu me apartasse de toda a mulher, principalmente das casadas; e por certo me lembro muito bem que me aconselhou isto com muita eficácia; cujos conselhos me pareciam conselhos de mulheres, aos quais eu tinha vergonha de obedecer. Porém eles eram conselhos vossos, e eu não os conhecia, mas cuidava que vós caláveis; e falando aquela, pela qual vós não deixáveis de me falar, vos desprezava naquela vossa serva, eu filho seu e servo vosso. Mas eu não sabia o que fazia, e ia cego de cabeça abaixo, caminhando à minha perdição; de forma que, entre os meus iguais e companheiros, tinha vergonha de ser menos desonesto do que eles, quando os ouvia louvarem-se das suas desonestidades; os quais tanto mais se vangloriavam, quanto eram mais torpes; e me deleitava no mal obrar, não tanto pela má obra, como por louvar-me dela. Que coisa há digna  de vitupério senão o vício? E eu cego, por não ser vituperado, me fazia mais vicioso; e quando não tinha cometido algum mal, pelo qual me pudesse igualar com perdidos, fingia ter feito o que nunca fizera, por não parecer e ser estimado em menos, quanto era mais inocente; e por não ser tido mais vil, quando era casto. 
               Estes são os companheiros com que eu passeava pelas praças de Babilônia; e me revolvia em seu lodo, como se fora bálsamo, ou cinamomo, ou outros cheiros, e preciosos perfumes. E no meio dela, para mais se apegar e enlodar, me achava invisível e me enganava, porque eu era enganado. Nem tão pouco aquela que já tinha fugido do meio da Babilônia (digo minha mãe), ainda que no demais não caminhava mui depressa, assim como me havia persuadido a castidade, assim cuidou no que meu pai de mim tinha dito; e ela entendia que para o diante poderia ser coisa pestilencial e perigosa, isto é, não cuidou em refrear com o matrimônio o que de todo não podia tirar.  Não cuidou nisto, porque cuidou que seria embaraçada a minha esperança com a prisão da mulher; não digo aquela esperança, que minha mãe em vós da outra vida, mas a esperança das letras, as quais meu pai e minha mãe desejavam muito que eu aprendesse, ele porque de vós quase não cuidava, e de mim cuidava vaidades; e ela, porque cria que não só me não podiam fazer dano as letras, mas antes me podiam ajudar alguma coisa a conhecer-vos. Isto é quanto eu posso alcançar dos costumes de meu país. Afrouxavam-me também as rédeas, para que  não jogasse mais do que convinha à severidade, para dissolução de várias paixões e desejos desordenados; e em todos, meu Deus, havia uma curiosidade, que me escondia e cerrava a serenidade da vossa claridade e saia como uma grossura a minha maldade. 
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 A seguir ele conta sobre um furto que fez. 

                 A Vossa Lei, Senhor, sem dúvida castiga o furto, que é lei escrita nos corações dos homens, a qual nem a mesma maldade pode apagar. que o ladrão há que sofra com paciência o outro? nem ainda o rico consente que furte o pobre: e eu quis furtar e o executei, sem ser obrigado da necessidade nem de falta alguma; mas enfadado da justiça e cheio de excessiva maldade. Porque furtei aquilo que me sobrava; e era muito melhor o que eu tinha, que o que furtava. Nem me queria aproveitar daquilo que furtava; mas folgava-me com o furto, e com o pecado. Havia  um peral junto da vossa vinha, carregado de peras, não gostosas nem formosas; este peral sacudimos nós uma noite e roubamos as peras, alta noite; e depois de havermos jogado em umas eiras fomos bem carregados delas, não para as comer, mas para as deitar aos porcos, ainda que nós também comemos alguma coisa delas. De forma que o que fizemos delas só nos foi gostoso por ser vedado. Vedes aqui o meu coração; Deus meu, vedes aqui o meu coração do qual tiveste misericórdia no meio do abismo. Diga-vos agora o meu coração, que buscava ele nisto, em ser mau sem porque, e sem haver causa da minha malícia senão a minha mesma malícia. Era feia, e eu a amava. Amei a minha morte e a minha perdição; e amava não tanto aquela em que pecava, como esse mesmo pecar. Torpe era a minha alma, saindo fora da vossa firmeza para minha perdição e não desejando coisa alguma afrontosa, mas amando a mesma afronta.
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Em seguida ele nos fala que ninguém peca sem causa
               Não se pode negar haver nos corpos formosura, como claramente se vê no ouro e na prata, e em tudo o mais; e a conveniência que se sente no tato da carne pode muito, e em cada um dos outros sentidos tem sua harmonia e conserto dos corpos. Tem também sua formosura a honra temporal e o poder de mandar; de onde nasce o desejo da vingança; e contudo nós não havemos, Senhor,apartar de vós, nem de vossa lei por alcançar estas coisas. E a vida que aqui vivemos tem seus afagos, por certo modo e conveniência da sua formosura e decoro, com tudo, isto que cá em baixo parece bem. Também a amizade dos homens é uma suave paixão, pela unidade de muitos ânimos. Por todas estas coisas e outras semelhantes pecamos, quando com uma imoderada inclinação que lhes temos, sendo eles os mais abatidos bens, deixamos os maiores e melhores, a vós Senhor, nosso Deus e nossa verdade, e a vossa lei. Na verdade, que estas coisas baixas tem seus deleites; mas não como o meu Deus, que as fez; porque nele se deleita o justo, e ele é o deleite daqueles que são retos de coração. 
                 De maneira que, perguntada a causa porque se comete algum pecado, não se costuma crer haver outra, senão o apetite de alcançar algum daqueles bens, que dissemos serem os últimos e derradeiros, e  o medo de os perder. São eles sem dúvida formosos, o que se não pode negar, ainda que em comparação dos soberanos e beatíficos, os de cá debaixo são vis e de nenhum valor. Aquele outro matou um homem. Por que? porque queria bem a sua mulher ou desejava a sua fazenda, ou o queria roubar para ter de que viver; ou porque temia do que matou outro tanto mal, ou se quis vingar dele pelo ter afrontado. Pode haver homem algum que matasse a outro, somente por se deleitar no homicídio, sem haver precedido causa? Quem tal há de crer? Pois aquele malvado e cruel Catilina -(Lúcio Sérgio Catilina, Senador e militar da Roma antiga) - de quem deixamos dito ter-se exercitado em tais obras, por não ter ociosas as mãos e o ânimo; a causa já a dissemos; a saber que se quis empregar em semelhantes obras, por não ter ociosas as mãos e o ânimo. E isto porque? para que, exercitado nestas maldades, e apoderado de Roma,alcançasse honra e fazenda, e mando livre das leis, da pobreza e da consciência. De sorte que nem este Catilina cruelíssimo amou as suas crueldades e vícios por si mesmos. 

Trechos retirados do livro de Confissões de Santo Agostinho.
Nicéas Romeo Zanchett