Total de visualizações de página

sexta-feira, 14 de junho de 2013

A FESTA DAS CRIANÇAS - Por Eça de Queiroz



A FESTA DAS CRIANÇAS 
Por Eça de Queiroz 
                  A mais engraçada festa das crianças de que me lembro, foi na Inglaterra na casa de campo dos meus amigos Birds, no país de Cornwall. (Condado da Inglaterra). Era uma mascarada reproduzindo em miniatura a côrte de el-re- Arthur e dos cavaleiros da Távola Redonda. E o que tornava interessante a ressurreição deste mundo heroico e gentil, popularizado por Tennison, é que nós estavamos ali justamente na região de Cornwall, onde vivia, entre saraus e batalhas, Arthur e sua rainha Guinevra e os doze valentes de Távola. A pouca distância do parque dos Birds, numa colina coberta de carvalheiras, a tradição coloca os paços de Arthur e a maravilhosa e sombria cidade de Caerleon. O rio em que pescavam trutas era o velho Usk. nas suas frescas margens erguera-se outrora o mosteiro, onde o irmão de Percival, uma noite, da janela da sua cela, viu passar numa nuvem cor de rosa, entre aromas de junquilhos, o vaso do Santo Graal cheio de sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.  E das varandas da sala de jantar, podiam avistar-se em dias claros, lá ao longe, na costa, e entre as rochas, as ruínas desse castelo de Tintagil, que aparece em todas as batalhas do rei Arthur, negro e triste junto ao mar de Cornwall. 
                   A côrte começou a reunir-se cedo, à hora do lunch, no grande salão branco, sobre o jardim. Era o filho dos Birds quem esplendidamente recebia, vestido de rei Arthur. O primeiro pérsonagem da lenda que chegou, acompanhado pela sua governante, foi o feiticeiro Merlino, um adorável bebê, gordo embezerrado, com a coroa de hera, uns cabelos loiros e umas enormes barbas proféticas enchendo-lhe a bochecha cor de rosa. Depois, seguidos das mamães, vieram entrando todos os outros figurões da romântica choronica, cavaleiros de cinco anos armados e emplumados, mongezinhos nédios bispos quase de mama com os seus baculos no braços, bardos rabugentos, mesteirais vestidos de seda, e fadas mais lindas que as fadas. As três rainhas místicas do Walhalla chegariam por último, gravezinhas,  todas três pela mão, cobertas de véus negros, escoltadas por um grande lacaio empolado. 
                     Pouco a pouco o salão ficou animado como a velha Caerleon numa manhã de torneio. O pequeno Bird, de Rei Arthur, com seu manto bordado de ouro, os cabelos frisados saindo em anéis de sob a coroa carregada de pedras, passeava majestoso, entre os seus irmãos  de armas. Uma senhora, encantada, quis dar-lhe um beijo. Ele repeliu-a asperamente, como teria feito o casto rei Arthur. Mais orgulhoso do que ele, só o bravo Lancelote do Lago, a quem tinham pintado um buço, e que revestido de armas negras, com uma longa pluma escarlate ondeando-lhe desde o elmo até às esporas de ouro, não tirava a mão da espada. E oque parecia ensoberbecê-lo mais, er a sua faixa de gaze branca, passada sobre a couraça, e feita em rígida obediência à epopeia, de um véu de rainha Guinerva. Essa era a grande beleza do sarau, a rainha Guinerva, uma irlandesinha com tranças negras e os olhos verdes como os prados de Erin. Séria e fria, envolta na pesada capa de cetim azul, conservava-se no meio de um sofá, imóvel, com um sorriso, que lhe punha uma covinha no queixo, indiferente aos madrigais, insensível às proezas  dos cavaleiros, e sempre de olhos baixos, ou por ela os bardos firam as arpas, ou por ela se batam os vassalos junto ao mar de Cornwall.  
                    Um escudeiro anunciou o lunch (merenda ou almoço), tocando uma busina de prata, tal qual como em Carleon. E pelo corredor, aos pares, toda a côrte seguiu à sala de jantar o rei Arthur, que levava pela mão, com uma graça solene, a linda rainha  Guinevra. Depois, mas não sem alguma confusão, em que necessariamente as mamães tiveram de ser enérgicas com os cavaleiors, ficou completa a Távola Redonda, ornada de baixelas e flores. E nada faltava do que mandam as poéticas crônicas. 
                     Ao fundo da mesa, na sua cadeira esculpida pelos Gênios, lá se achava o velho feiticeiro Merlino, a quem a governante, para ele comer com limpeza a sua sopa, tirara as barbas proféticas. Não havia um javali assado sobre um prato de ouro. Apenas um modesto roast-beff. Mas o rei Arthur levantava o seu copo de água, misturada de uma gota de Bordeaux, com a nobreza com que o outro, ha bastante centos de anos e naquela mesma colina, erguia a taça de hidromel em dias de vitória. De resto a sala, com o seu teto de carvalho lavrado, tinha o severo aparato doutras eras e através da janela lá estavam, como nos versos da "Morte de Arthur", as ruínas do Castelo de Tingagil, negro e triste junto ao mar de Cornwall. 
                     A côrte mostrava tanto apetite como à volta duma batalha aos lobos nos bosques, que avizinham o Usk. Até as fadas devoravam. Sir Galahad, esse que possuía a força de mil, porque o seu coração era virgem, já por duas vezes reclamara pudim de batatas, batendo furiosamente com o garfo sobre o seu murrião de prata, posto ao lado da mesa entre os cristais. 
                     Fora prciso, por causa da sua magnífica túnica de cetim verde, atar um guardanapo ao pescoço do cavaleiro Bors, essa radiante flor de bravura cristã. No meio de toda a alegria o forte Percival, incomodado com a sua armadura, permanecia manso e corado com ar de estar penando (como o outro Percival) em se recolher ao mosteiro de Wik. Depois, de repente e inexplicavelmente, rolou abaixo da cadeira, entornando todo o molho nos joelhos do intrigante Modred, o mais violento cavaleiro da Távola. 
                    Modred despropositou e arrepelou os cabelos de ouro de Percival. A tia do herói acudiu assustada, e então, como o famoso Lancelote do Lago se estava tornando turbulento, foi arrancado da Távola Redonda ignominiosamente, nos braços dum escudeiro, aos berros. 
                    Depois do lunch, a côrte del-rei Arthur voltou ao sarau a regozijar-se com danças. Sarau delicioso! Havia dois monges extraordinários, de buréis brancos, tão pequenos e tão trôpegos que as senhoras tinham de os segurar pelos braços nas quadrilhas e que queriam constantemente dançar, mais joviais que os cavaleiros, prontos e atirar-se sempre aos bracinhos da camponesas  toucadas de flores. 
                    O puro Sir Galahad, já sem broquel e sem murrião, galopava doidamente com uma ligeira fada, chegada nessa manhã da Bretanha, das florestas de Broceliande. Um bardo, com coroa de folhas de carvalho enterrada até aos olhos, chorava por ter perdido a sua harpa. Havia também um príncipe do Mar do Norte, um castelão de Erin e o bravo cavalheiro Bors, que que se tinha refugiado a um canto, por detrás dum sofá, onde sentados no chão continuavam na sua divertida merenda com bolos , dando gritos, quando as senhoras queriam pôr cobro àquela gulatão imprópria de paladinos cristãos. 
                     No corredor o pai Bird teve de suster um rechonchudo abade, que arregaçava as vestes sacerdotais e ia, furioso, sovar o intrigante cavaleiro Modred. E não foi possível realizar a parte mais picante da lenda, fazendo com que Lancelote do Lago cortejasse Guinevra. O bravo Lancelote (bem diferente do outro) parecia de coração duro e  sem gosto pelo sorrir das damas. Terminou mesmo por ter uma hedionda perrice, e caiu nos joelhos da mamãe, com duas grossas lágrimas nas pestanas e a sua bela pena escarlate  caída no chão, como numa tarde de derrota. 
                     Cedo os bebês começaram a estar cansados. Eu mesmo, no meio da festa, tive de levar ao colo o venerável bispo de Blackburn com a sua mitra e com o seu rico baculo. Os seus doces olhinhos azuis fecharam-se  de sono. Deitei-o num sofá, junto da mais pequenina das rainhas do Walhalla, que já ali dormia sob o véu negro, com os cabelos de ouro soltos e o lírio do Paraiso entre as mãozinhas cruzadas... 
                     E o santo bispo candidamente adormeceu ao lado da mística rainha. 
.
BREVE BIOGRAFIA DE Eça de Queiroz. 
José Maria Eça de Queiroz, romancista português, nasceu em Povoa de Varzim em 25 de Novembro de 1843 e morreu em Neuilly a 17 de Agosto de 1900, sendo cônsul de Portugal em Paris. Filho de um magistrado, Eça foi educado também para a magistratura, fazendo os primeiros estudos no Porto e formando-se em direito na Universidade de Coimbra. Em 1866 veio para Lisboa, escrevendo na Gazeta Portugal e colaborando depois com Ramalho Ortigão no Ministério da Estrada Cintra, romance em cartas para do Diário de Notícias, e nas Farpas, mensário de crítica da política, das letras e dos costumes. Tendo feito concurso para cônsul, foi em 1872 nomeado para Havana, passando mais tarde a Newcastle, Bristol e Paris. Em 1899-90 dirigiu a Revista de Portugal. Foi o mestre do realismo nas letras portuguesas, e a sua obra, de extraordinária originalidade e valor artístico, cintilante de humorismo e de ironia, compreende: "O Crime do Padre Amaro", ed.definitiva, 1876; "O Primo Basílio", 1877; "A Relíquia", 1887; "Os Maias", 1888; "A Ilustre Casa de Ramires", 1897; "A Cidade e as Serras", 1901; "O Mandarim"; "Correspondência de Fradique Mendes"; Contos; Prosas Bárbaras; Ecos de Paris; Cartas de Inglaterra; Uma Companhia alegre, (reunião de seus artigos nas Farpas), etc. 
.
Nicéas Romeo Zanchett 
LEIA TAMBÉM >>>>>> EXPRESSÕES POÉTICAS UNIVERSAIS


Nenhum comentário:

Postar um comentário