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terça-feira, 25 de junho de 2013

O CRIME - Por Dostoievsky




O CRIME
Por Feodor Dostoievsky 

                  Como na sua última visita, Kaskolnikoff viu a porta entreabrir-se vagarosamente e, pela estreita fenda, dois olhos  brilhantes fixaram-se nele com expressão de desconfiança. Neste momento a serenidade abandonou-o e chegou a fazer um disparate que podia ter deitado tudo a perder. 
                  Receando que Alena Ivanovna tivesse medo de se achar a sós com um indivíduo cujo aspecto não era dos mais tranquilizadores, puxou a porta, para que a velha não a tornasse fechar. A avarenta não tentou fazê-lo, mas não largou o fecho, sendo assim arrastada para o patamar. Como se conservasse atravessada no limiar e não deixasse a passagem livre, Raskolnikoff  avançou para ela. Assustada, deu um passo para trás, quis falar, mas não pode pronunciar uma palavra e fitou o visitante com olhar espantado. 
                   - Bom dia, Alena Ivanovna, cumprimentou ele no tom mais despreocupado que pode afectar, trago-lhe... um objeto... mas entremos... para avaliar, é preciso examiná-lo à luz...
                   E sem esperar que a velha o convidasse a entrar, passou para o quarto. A usurária segui-o e desentravou-se-lhe a língua. 
                   - Meu Deus! Mas que quer? Quem é o Senhor? Que deseja? 
                   - Então, Alena Ivanovna, não me conhece? Raskolnikoff ! Tome, é o penhor em que lhe falei no outro dia...
                   E apresentou-lhe o embrulho. 
                   Alena Ivanovna ia examiná-lo, mas repentinamente reconsiderou e erguendo a cabeça cravou um olhar penetrante e desconfiado no visitante que, com tal sem-cerimônia, se tinha introduzido em sua casa. Fitou-o assim durante um minuto. Raskolnikoff julgou mesmo ler o olhar da velha expressão escarninha, como se ela já desconfiasse de tudo. Sentiu que perdia o sangue frio, que chegava a ter medo e que, se esse mudo inquérito durasse meio minuto mais, com certeza deitaria a fugir. 
                   - Por que olha desse modo para mi, como se não me conhecesse? interrogou ele subitamente, zangado também. Se aceita o objeto, está muito bem; se não o quer, acabou-se, vou a outra parte; é desnecessário fazer-me perder tempo. 
                   Estas palavras escaparam-lhe sem as ter premeditado. 
                   A linguagem decidida de Raskolnikoff produziu ótima impressão na velha.
                   - Mas por que tem tanta pressa, batuchka? E o que vem a ser isto? interrogou ela mirando o embrulho. 
                   - É a cigarreira de prata de que lhe falei ha dias. 
                   A velha estendeu a mão. 
                   - Como está pálido! E as mãos tão trêmulas! Está doente, batuchka ? 
                   - Tenho febre, respondeu ele secamente. Como não se há de estar pálido quando se não tem que comer! concluiu a custo. 
                   As forças abandonavam-no novamente. mas a resposta parecia natural; a velha aceitou o penhor. 
                   - O que é? perguntou ainda outra vez, tomando o peso ao embrulho e olhando fixamente o interlocutor. 
                   - Um objeto... uma cigarreira... de prata... veja. 
                   - É singular, não parece de prata!... E como isto esta atado! 
Enquanto Alena Ivanovna tentava desatar o pequeno embrulho, ia-se aproximando da luz (a despeito do calor asfixiante, fechara todas as janelas); nessa posição voltava costas ao visitante e durante alguns momentos não se preocupou com ele. Raskolnikoff desbotou o casaco e puxou o machado, sem o tirar completamente do nó corredio, limitando-se a segurá-lo com a mão direita. Sentia que os membros se lhe paralisavam. Receou deixar cair a arma... repentinamente, a cabeça começou a andar-lhe à roda... 
                    - Mas que demônio está aqui dentro? exclamou Alena Ivanovna zangada, fazendo um movimento para o lado de Raskolnikoff. 
                    Não havia um momento a perder. Raskolnikoff tirou o machado debaixo do casaco, levantou-o no ar segurando-o com ambas as mãos, e quase maquinalmente, porque se sentia sem força, deixou-o cair sobre a cabeça da velha. Mas apenas vibrou o golpe, voltou-lhe a energia física. 
                     Alena Ivanovna estava, como de costume, com a cabeça descoberta. Os cabelos grisalhos e raros, untados com azeite, formavam uma delgada trança presa na nuca por um bocado de pente de chifre. O golpe fendeu-lhe o sinciput, para o que contribuiu a pequena estrutura da vítima,que apenas soltou um gemido e cambaleou, tendo contudo ainda forças para levar à cabeça as mãos numa das quais  conservava o embrulho. Então Kaskolnikoff, cujos braços recuperaram todo o vigor, vibrou mais dois golpes no sinciput da avarenta. O sangue golfou abundante e o corpo caiu pesadamente no chão. Vendo a vítima cair, Raskolnikoff recuou; mas de repente inclinou-se sobre o rosto da velha; estava morta. Os olhos desmesuradamente abertos pareciam querer saltar das orbitas; os arrancos da agonia tinham-lhe dado às feições um aspecto horrível. 
                     O assassino pousou o machado no chão e preparou-se  para revistar o cadáver, tomando as maiores precauções para não se machucar com o sangue; recordava-se de que na sua última visita à velha ela tirara as chaves da algibeira direita do vestido. Estava em plena posse das faculdade intelectuais; não sentia vertigens, o menor atordoamento, mas as mãos continuavam a tremer-lhe. Mais tarde recordou-se de que fora muito cauteloso e que tivera o maior cuidado em não se sujar... Depressa encontrou as chaves; como da outra vez, estavam todas presas numa argola de aço. 
                      Raskolnikoff passou imediatamente ao quarto de cama. Este compartimento era muito pequeno; dum lado havia um grande oratório cheio de imagens; do outro um leito muito limpo, com coberta de seda feita de retalhos e acolchoada. Junto da parede uma cômoda. Caso singular! Quando Kaskolnikoff começou a experimentar as chaves, um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Pensou por um momento em abandonar tudo e retirar-se; mas esse pensamento durou um instante; era já tarde para recuar. 
                     Um sorriso contraía-lhe os lábios por tal ter pensado, quando repentinamente teve um sobressalto terrível: se por acaso a velha não estivesse ainda morta, se voltasse a si? Largou as chaves, correu para junto do corpo, pegou no machado e preparou-se para descarregar novo golpe sobre a sua vítima; mas a arma, já erguida, não desceu. Alena Ivanovna estava morta e bem morta, não havia dúvida. Inclinando-se novamente para examinar de perto, Raskolnikoff verificou que o crânio estava despedaçado. O sangue empapava no chão. Reparando de repente num cordão que a usurária tinha no pescoço, Raskolnikoff puxou-o com força, mas o cordão resistiu e não partiu. 
                      O assassino tentou então tirá-lo, fazendo-o descer pelo corpo, sendo mais feliz nesta tentativa. O cordão encontrou um obstáculo e deixou de descer. Raskolnikoff levantou impacientemente o machado, pronto a ferir o cadáver para cortar com o mesmo golpe o nó; mas resolveu não proceder com tanta brutalidade. Por fim, depois de dois minutos de esforços que lhe deixaram as mãos arroxeadas, conseguiu partir o cordão com o gume do machado sem tocar o cadáver. Como supusera, do cordão pendia uma bolsa a par de uma pequena medalha esmaltada e duas cruzes, uma de cipreste e outra de cobre. A bolsa, ensebada, um pequeno saco de camurça, estava completamente cheia. Raskolnikoff meteu-a na algibeira sem verificar o conteúdo, atirou as cruzes sobre o peito da velha, e, levando o machado, entrou apressadamente no quarto de cama. 
                      A sua impaciência era enorme; agarrou novamente as chaves e voltou à tarefa interrompida. Mas eram infrutuosas as tentativas para abrir o móvel, o que se devia atribuir mais aos repetidos enganos de que à tremura das mãos; ele via, por exemplo, que uma chave não servia na fechadura e teimava em fazê-la entrar. Subitamente recordou-se de uma conjectura que fizera na sua última visita; a chave grande, dentada, junta às outras mais pequenas, devia ser de algum cofre onde Alena tivesse talvez fechado todo o seu dinheiro. Abandonando o móvel, procurou debaixo da cama, lembrando-se que é costume das velhas esconderem em tal sítio os pecúlios. 
                      Efetivamente lá estava um cofre de pouco mais de um archine de comprimento, (unidade russa de comprimento) forrado de marroquim vermelho. A chave grande servia perfeitamente na fechadura. Logo que abriu o cofre, Raskolnikoff viu, sobre um pano branco, uma peliça com guarnições encarnadas, debaixo da qual estava um vestido de seda, e depois deste um chale; no fundo parecia haver apenas farrapos. O assassino limpou ao marroquim vermelho as mãos ensanguentadas. 
                      - No encarnado o sangue há de perceber-se menos. 
                      Depois reconsiderou;
                      - Meu Deus, estarei eu doido? 
                      Mas apenas tocou nas roupas, caiu de entre as peles um relógio de ouro. Revolveu então o conteúdo do cofre. Entre os farrapos havia objetos de ouro, representando, naturalmente, cada um deles um penhor. Eram pulseiras, cadeias, brincos, alfinetes de gravata, uns encerrados em estojos, outros embrulhados em pedaços de papel e atados com cordéis. 
                      Raskolnikoff não hesitou; encheu as algibeiras das calças e do casaco com as jóias, sem abrir os estojos, sem tocar nos embrulhos; mas repentinamente teve de interromper-se...
                     Ouviu passos no quarto onde estava o cadáver. Sentiu-se gelado de pavor. Mas o ruído deixou de se ouvir; julgou-se vítima duma alucinação; quando de repente percebeu distintamente um grito, ou antes um fraco gemido. Passado um minuto ou dois, tudo recaiu novamente num silêncio de morte. Raskolnikoff setara-se no chão, junto ao cofre, e esperava, respirando dificilmente. De repente estremeceu, agarrou o machado e saiu do quarto de cama. 
                    No meio do aposento Isabel, sobraçando um grande embrulho, contemplava com olhar aterrado o corpo hirto da irmã; pálida como um cadáver, parecia não ter forças para soltar um grito. À brusca aparição do assassino começou a tremer e um suor gelado inundou-lhe o rosto; tentou erguer os braços, abrir a boca, mas não fez o menor gesto, não emitiu o menor som, e recuando vagarosamente, com os olhos fixos em Raskolnikoff, meteu-se num canto. A pobre recuara sem dizer uma palavra, como se a respiração lhe faltasse. O assassino avançou para ela com o machado erguido; os lábios da infeliz contraíram-se e tremeram como os das crianças quando tem medo, olhando para o objeto que as aterra.
                     O terror dominava por tal forma a desgraçada que, vendo-se ameaçada pela arma, nem sequer pensou em preservar a cabeça, por esse gesto maquinal que em tai casos sugere o instinto de conservação. Afastou apenas o braço esquerdo e estendeu-o vagarosamente na direção do assassino, como para o desviar. O ferro abriu-lhe o crânio, fendendo toda a aparte superior da fronte até quase ao sinciput. Isabel caiu redondamente, morta. Com a cabeça perdida, Raskolnikoff pegou no embrulho que a sua segunda vítima trazia, para logo o largar e correr para a casa de entrada. 
                    Estava cada vez mais alterado, sobretudo desde que cometera o segundo assassínio, que não premeditara. Tinha pressa de fugir. Se naquele momento estivesse em estado de perceber melhor as coisas, se lhe tivesse sido possível calcular todas as dificuldades da situação, vê-la tão desesperada, tão horrorosa, tão absurda como realmente era, compreender quantos obstáculos tinha ainda de remover, talvez mesmo novos crimes a praticar, para poder abandonar essa casa e refugiar-se na sua, teria provavelmente renunciado á luta e ido ato contínuo denunciar-se; nem se pode dizer que posse a pusilanimidade que o levaria a isso, mas o horror do que fizera. Essa impressão ia tomando vulto a cada momento.  Por coisa alguma se aproximaria agora do cofre nem entraria no quarto. 
                     Mas, a pouco e pouco, o seu espírito preocupou-se com outros pensamentos e caiu numa espécie de vaga meditação; por momento o assassino parecia esquecer-se de si, ou antes de esquecer-se do principal para pensar em ninharias. Lançando os olhos para a cozinha, viu um alguidar com água; lembrou-se de se lavar e limpar o machado. O sangue tornara-lhe as mãos glutinosas. Depois de mergulhar na água o gume do machado, pegou num pedaço de sabão que estava no parapeito da janela e começou as suas abluções. Quando acabou de lavar as mãos, ensaboou o cabo da arma que estava também ensanguentado. 
                    Depois limpou-se a uma roupa estendida a secar numa corda que atravessava a cozinha. Terminada a operação, aproximou-se da janela para examinar minuciosamente o machado.  Os vestígios de sangue tinham desaparecido, mas o cabo estava ainda úmido. Raskolnikoff escondeu-o cuidadosamente debaixo do casaco, pendurado no nó corredio. Depois inspecionou minuciosamente o fato, tanto quanto permitia a fraca luz que iluminava a cozinha. À primeira vista o casaco e as calças nada apresentavam que originasse suspeitas; mas as botas estavam manchadas de sangue. Limpou-as com um pano molhado. 
                    Estas precauções, porem, não o tranquilizam em absoluto, porque não podia ver distintamente e era possível ter-lhe passado despercebida alguma mancha. Deixava-se ficar de braços caídos, no meio da casa, obsediado por idéias aflitivas; o pensamento de que endoidecia, de que nesse momento estava incapaz de tomar uma resolução e de garantia a sua segurança, de que o seu procedimento não era, porventura, o que convinha em tal situação...
                   - "Meu Deus! Devo partir, sem demora, o mais depressa possível!" murmurou ele. 
                   E passou à casa de entrada, onde o esperava a impressão de terror mais intensa que até então experimentara. 
                   Ficou petrificado, sem querer acreditar no que via; a porta exterior que abria sobre o patamar, aquela a que batera e por onde pouco antes entrara, estava aberta; por precaução, talvez, a velha não a fechara; nem tinha dado volta à chave, nem correra o fecho. Mas, meu Deus, ele bem vira depois a Isabel! Como não lhe ocorrera que a adela entrara pela porta? Ela não podia ter entrado pela fechadura. 
                   Fechou a porta e correu o fecho. 
                   - Mas não, não é isto... Preciso sair depressa...
                   Puxou novamente o fecho e entreabrindo a port pôs-se a escutar. 
                   Aplicou o ouvido durante muito tempo. Em baixo, naturalmente à porta da rua, duas vozes jogam-se injúrias. 
                   "Quem será esta gente?" Esperou pacientemente. Por fim, deixaram de se ouvir os doestos; os contendores haviam-se retirado. Preparava-se para sair, quando no andar de baixo se abriu ruidosamente uma porta, e alguém começou a descer, cantando. "Porque fará toda essa gente tanto ruído?" pensou ele; e cerrou outra vez a porta, continuando a esperar. Finalmente o silêncio restabeleceu-se, mas no momento em que Raskolnikoff se preparava para descer, o seu ouvido apurado percebeu novo ruído. 
                    Eram passos ainda muito afastados que subiam os primeiros degraus da escada; no entanto, logo os ouviu, adivinhou imediatamente a verdade; vinham sem duvida para aqui, para o quarto andar, para casa da velha. Como explicar este pressentimento? O que havia nesses passos de tão extraordinariamente significativo? Eram pesados, vagarosos e regulares. 
                    "Ele chegou  ao primeiro andar e continua a subir... cada vez se houve melhor... toma a respiração como um asthmatico... Prepara-se para subir ao terceiro andar... Aí vem!..."
                     Raskolnikoff teve repentinamente a sensação de uma paralisia geral, como quando num pesadelo nos julgamos perseguidos por inimigos que já estão próximos de nós, que assassinar-nos, e ficamos petrificados no mesmo lugar, sem podermos fazer o menor movimento. 
                    O desconhecido começava a subir a escada do quarto andar; Raskolnikoff, a quem o terror até então imobilizara no patamar, pode enfim vencer o torpor e entrou a toda a pressa para casa, fechando a porta imediatamente e correndo o fecho sem fazer o menor ruído. Nesse momento foi guiado mais pelo instinto do que pela reflexão. Encostou-se à porta e pôs-se à escuta, mal se atrevendo a respirar. O visitante já estava no patamar; apenas a porta separava os dois. O desconhecido estava para Raskolnikoff na mesma situação em que este se encontrara ha pouco para com a velha. 
                     O visitante tomou a respiração com esforço, por várias vezes. "Deve ser nutrido e alto", pensou o assassino apertando o cabo do machado. Tudo aquilo lhe  parecia um sonho. O desconhecido puxou violentamente a campainha. 
                     Julgou, por certo,  ouvir ruido no interior, porque durante alguns segundos escutou atentamente. Depois tornou a tocar, esperou ainda algum tempo e de repente, impacientado, puxou com toda a força pelo puxador da porta. Raskolnikoff olhava aterrado para o fecho que oscilava na chapa  e esperava a cada instante vê-lo saltar, tão fortes eram os empuxões. Pensou em segurar o fecho com a mão, mas o homem podia desconfiar. A cabeça recomeçava a andar-lhe à roda. "Estou perdido!" pensou; todavia recuperou a serenidade quando o visitante se pôs a monologar. 
                     - Estarão a dormir ou alguém as estrangularia? Mulheres três vezes malditas! resmungava. Olá! Alena! Ivanovna, velha bruxa! Isabel Ivanovna, beleza maravilhosa! Abram! que excomungadas !  Estarão a dormir? 
                     Exasperado, tocou dez vezes seguidas, com força. Este homem era, sem dúvida, íntimo da casa; parecia mandar ali. 
                     Ao mesmo tempo ouviram-se na ecada passos ligeiros apressados. Era mais alguém que subia para o quarto andar. Raskolnikoff não percebeu a princípio a presença do recém chegado. 
                     - Pois será possível que não esteja cá ninguém? disse este com voz alegre, dirigindo-se ao primeiro visitante, que continuava a puxar pelo cordão da campainha. Bom dia Koch! 
                     "A julgar pela vós deve ser um rapazito, pensou Raskolnikoff. 
                     - Eu sei lá! Por pouco não arrombei a fechadura, respondeu Koch. Mas de onde me conhece o Senhor? 
                     - Que pergunta! ainda anteontem, no Gambrimos,  lhe ganhei três partidas de bilhar a seguir. 
                      - Ah! 
                      - Então, elas não estão em casa! É extraordinário! Direi mesmo, é estúpido. Onde iria a velha? precisava  falar-lhe. 
                       - Também eu, batuchka, precisava  falar com ela. 
                       - Então, que remédio se lhe há de dar? Irmos embora. Ai, ai! E eu que vinha pedir-lhe dinheiro emprestado! exclamou o rapaz. 
                       - Certamente, não há remédio senão irmos  embora; mas para que diabo me disse ela que eu viesse cá? Foi a próprio bruxa que me marcou a hora. E é tão longe de minha casa aqui! Mas onde iria ela? Não entendo!  Ela que se não move durante todo o ano, que está aqui a apodrecer, que sofre de reumatismo, logo hoje é que saiu! 
                        - E se perguntássemos ao dvornik? 
                        - Para que? 
                        - Para saber onde ela foi e quando volta. 
                        - Hum!... que diabo... perguntar... Mas ele nunca sai!... E tornou a puxar pelo puxador da porta. Diabo, não há remédio senão irmos! 
                        - Espere! exclamou o rapaz, olhe, vê como a porta resiste quando se puxa?  
                        - Então?  
                        - É a prova de que não está fechada com a chave, mas só com o fecho. Não o sente mover-se? 
                         - E depois?  
                         - Não percebe? É claro que alguma delas está em casa. Se ambas tivessem saído, teriam fechado a porta por fora com a chave e não corriam o fecho por dentro. Não ouve o barulho que ele faz? Ora, para qualquer fechar uma porta por dentro é preciso estar em casa. Evidentemente elas estão cá. 
                         - É verdade, é! exclamou Koch surpreendido. Então elas estão! 
                         E pôs-se a sacudir a porta furiosamente. 
                         - Veja lá, não puxe com tanta força. Aqui há qualquer coisa... O Senhor tocou, puxou pela porta com toda a sua força e não abriram. Está claro que ou ambas estão desmaiadas ou... 
                         - Ou... o que? 
                         - O que devemos fazer é ir chamar o dvornik para ele próprio as acordar. 
                         - Não é má ideia!
                         - Espere. Não saia daqui enquanto eu vou chamar o dvornik.
                         - Mas para que hei de ficar. 
                         - Ninguém sabe o que poderá acontecer. 
                         - Pois cá fico. 
                         - Ainda espero vir a ser juiz instrutor! Aqui há qualquer coisa que se não percebe, é evidente! disse com vivacidade o rapaz, descendo a quatro os degraus da escada. 
                         Ficando só, Koch tornou ainda a tocar, mas com pouca força; depois pôs-se a mover com ar pensativo o puxador, fazendo oscilar a lingueta para se convencer de que a porta estava apenas fechada com o fecho. 
                          Em seguida, respirando com esforço, agachou-se para olhar pelo buraco da fechadura, mas como a chave estava pela parte de dentro nada conseguiu ver.
                          Encostado à porta, Raskolnikoff apertava na mão o cabo do machado. 
                          Estava como que em delírio e preparando-se para fazer frente aos dois homens quando eles transpusessem o limiar. Mais de uma vez ouvindo-os bater à porta teve a ideia de por termo àquilo e de os interpelar. Sentia vontade de os insultar. "Quanto mais depressa isto acabar, melhor!!" pensava ele. 
                          - Ora esta...
                         O tempo passava e não vinha ninguém. Koch impacientava-se. 
                         - Ora, adeus!... exclamou ele farto de esperar e descendo a encontrar com o rapaz. A pouco e pouco o ruido dos seus passos, que ressoavam pesadamente na escada, foi esmorecendo.
                         - Meu Deus! Que hei de fazer? 
                         Raskolnikoff correu o fecho e entreabriu a porta. Animado com o silêncio que reinava em todo o prédio e não estando nesse momento em estado de refletir, saiu, fechou a porta, e começou a descer a escada. 
                         Descera já alguns degraus, quando, subitamente, ouviu um grande barulho ao fundo da escada. Onde havia ele de meter-se? Mão havia meio de se esconder em parte alguma. Tornou a subir a toda a pressa. 
                         - Oh diabo! diabo! pára! 
                         Aquele que assim gritava acabava de sair de um dos andares inferiores e galgava os degraus de quatro a quatro. 
                         - Mitka! Mitka! Mitka! O diabo que leve o doido!
                         O afastamento não permitiu ouvir mais; o homem que proferira estas exclamações estava já longe. Restabeleceu-se o silêncio; mas mal cessara este incidente, produziu-se outro; uns poucos homens falando em voz alta subiam tumultuosamente a escada. Eram três ou quatro. Raskolnikoff distinguiu a voz sonora do rapaz. 
                         - São eles! 
                         Já  não esperando escapar-lhes, correu ousadamente ao seu encontro. 
                         - Suceda o que suceder! pensou ele. Se me prenderem, deixá-los! Se me deixarem passar, passarei. Mas hão de lembrar-se de terem cruzado comigo na ecada... Ia dar-se o encontro. Só um andar os separava... Repentinamente, Raskolnikoff encontrou a salvação! Uns degraus mais, e à direita, estava desabitada e com a porta aberta uma das divisões, o aposento do segundo andar onde trabalhavam os pintores. Muito a proposito acabavam de o abandonar. 
                        Eram certamente eles que haviam saído há pouco, fazendo aquela algazarra. Percebia-se que a tinta dos sobrados estava ainda fresca. Os pintores tinham deixado no meio do quarto uma lata de tinta e um grande pincel. Num momento Raskolnikoff introduziu-se no quarto desocupado e encostou-se na parede. Era tempo dos seus perseguidores chegarem um momento depois ao patamar, continuando a subir para o quarto andar, falando alto. Depois de esperar que se afastassem, saiu nos bicos dos pés e desceu precipitadamente. 
                       Ninguém na ecada! ninguém na porta! Transpôs rapidamente o portal e, chegando à rua tomou pela esquerda. 
                       Raskolnikoff tinha certeza de que naquele momento os visitantes da velha, depois de se espantarem por verem a porta aberta, contemplavam cheios de horror os dois cadáveres. 
                        - Não lhe será por certo mais de um minuto para adivinharem que o assassino conseguiu escapulir-se enquanto subiam a escada... 
                        Mas, enquanto fazia estas reflexões, não se atrevia a estugar o passo, apesar de estar ainda um pouco distante da primeira esquina.   
                        - Se eu entrasse num portal, e esperasse lá um instante? - Nada, isso não tem jeito! Se fosse atirar o machado para qualquer parte? Se me metesse num trem? Nada, nada disso...
                        Finalmente chegou a um pereoulok, mais morto do que vivo. sabia que podia considera-se salvo. Ali as suspeitas  não podiam incidir sobre ele; e depois era-lhe mais fácil não despertar a atenção no meio dos transeuntes. Mas as sucessivas comoções tinham-no de tal modo prostrado, que sentiu vergarem-lhe as pernas. 
                        Corriam-lhe pelo rosto grandes gotas de suor. 
                        - Já tens a tua conta, disse-lhe alguém, quando ele ia a desembocar no canal, julgando-o bêbado. 
                        Estava atordoado; quanto mais caminhava, mais lhe baralhavam as ideias. Quando chegou ao cais, assustou-se por lá ver tão pouca gente e, receando que o notassem em lugar tão pouco concorrido, voltou a pereoulok. Conquanto mal se aguentasse de pé, fez um grande rodeio para voltar a casa. Quando lá chegou ainda não estava de posse da sua serenidade; não se lembrou do machado senão quando já sumia a escada. E no entanto, o problema que ele tinha a resolver era dos mais sérios: tornar a colocar a arma onde a encontrara, sem atrair a atenção. Se estivesse em estado de apreciar a sua situação, teria certamente compreendido que em vez de colocar o machado no seu lugar, seria preferível desfazer-se dele, atirando-o para o pátio duma casa qualquer. 
                       Mas tudo correu à medida dos seus desejos. A porta do cubículo estava encostada, mas não fechada, o que levava a crer que o dvornik estava em casa. Mas Raskolnikoff perdera a tal ponto o raciocínio, que abriu a porta. Se o dvornik lhe perguntasse "o que teria?" talvez, sem dizer uma palavra, lhe entregasse o machado. Mas, como horas antes, não estava lá, e Raskolnikoff pode colocar o machado debaixo do banco, onde o tinha encontrado. 
                     Depois subiu a escada e chegou ao quarto sem encontrar viva alma; a porta da hospedaria  estava fechada. Logo que entrou em casa, deitou-se mesmo vestido, no divã. Não dormiu, mas caiu numa espécie de torpor. Se alguém tivesse então entrado no quarto, ele ter-se-hia levantado e não poderia conter um grito. No seu cérebro chocavam-se pensamentos diversos; mas por mais esforços que fizesse, não conseguiu seguir nenhum. 

                  BREVE BIOGRAFIA de Dostoievsky 
                  Feodor Michailovitch Dostoievsky, romancista e jornalista russo, nasceu em Moscou a 11 de Novembro de 1822 e morreu a 9 de Fevereiro de 1881. Preso por ter tomado parte na conspiração de 1849, a sua sentença  de morte foi comutada pela de exílio, tendo sido perdoado na acessão de Alexandre II. Entre as suas obras estão incluídas: "Humilhados e Ofendidos", 1846; Recordações da casa dos mortos", das memórias da Sibéria", 1858; Crime e Castigo, 1866, etc. 
Nicéas Romeo Zanchett 

                     

                    

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