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terça-feira, 17 de setembro de 2013

A MORTE DO LOBO - Por Camilo Castelo Branco


A MORTE DO LOBO 
 Por Camilo Castelo Branco 
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                Padre Justino entrava e saia de noite com resguardo exemplar. Acautelava-se em mais de um sentido. Ia com grande fé no preceito do santo e num clavinaço de dois canos, por causa dos lobos que são os policiais importunos aos vagabundos noturnos daqueles sítios. 
                Uma noite de Novembro caia neve, e os aspectos do céu profundamente frio tinham umas estrelas trêmulas, lucilantes, e um luar álgido que dava às concavidades nevadas a claridade nítida duns lagos de prata fundida. O Padre vestia polainas de saragoça assertoadas, tamancos ferrados e suspensos nas fortes presilhas das polainas, jaqueta de peles e uma carapuça alentejana escarlate, que lha abafava as orelhas. debaixo da lapela da véstia resguardava a escorva da clavina, e caminhava curvado com as mãos nas algibeiras e os olhos vigilantes nas gargantas dos serros. Uivos longínquos de lobo ouviam-se e punham-lhe vibrações na espinha,e um terror grande naquela imensa corda de serras, onde ele, àquela hora, se considerava o único ente exposto a ser comido pelas feras esfomeadas. Pulava-lhe o coração. Ao trepar a um outeiro, entaliscado de rochedos que pareciam resvalar de encontro a ele, ouviu o uivo ali perto, para lá da espinha do serro.  Tirou a clavina do sovaco, e lívido, com a sensação estranha do figado despegado, meteu o dedo tremente, automático no gatilho. Fez um ato de contrição; provava quanto as religiões são importantes, urgentes, nas crises, nos conflitos sérios do homem com o lobo. esperou. A fera assomara na lomba do outeiro, recortando-se esbatida no horizonte branco com uma negrura imóvel, sinistra; parecia um bronze, um emblema de sepulcro. Ela quedou-se por largo espaço num aspecto de admiração, de surpresa. Depois, descaiu sobre as patas traseiras, com ares contemplativos, de uma pacatez fleugmática. Mediam trinta passos entre a fera e o frade. Estava ao alcance de bala o lobo; mas o frade, caçador astuto, manhoso, receava perdem um dos tiros. Pôs-lhe a pontaria com um gesto de espalhafato; dava gritos como quem açula cães; "Boca! pega! cerca! Ai vai lobo!" Ecos respondiam; e a fera, menos versada na física dos sons reflexos, olhava crespa, espavorida, para o lado em que repercutiam os brados. Ergueu-se, e desceu mui de passo, com uns vagares irônicos, com a cauda de rojo e o dorso erriçado, a ladeira da colina. O padre via-a negrejar na linha flexuosa do declive. Pensou retroceder; mas o lugarejo de Felícia estava mais perto que a sua aldeia, e para aquele lado latiam cães de um faro que adivinha o lobo antes de lhe ouvir o uivo, e o fariscavam pela inquietação das rezes dos currais. Trepou afoito ao teso do outeiro; ganhara ânimo; bebera uns tragos de aguardente de uma cabana atada com o polvorinho no córrego. Sentiu-se capaz de afrontar o rebelde, se ele o não respeitasse como rei da criação, segundo afirmativas de teólogos que nunca viram lobo. Do topo olhou para baixo; não o avistou. Carcavava-se um alagar emaranhado de bravio espesso onde se embrenhara. Estugando o passo, ganhou uma clã ladeada de extensas leiras de feno alvejantes como um estendal de lençóis; e quando olhava para trás receoso viu a alimária, a grandes passos, com a cabeça alta atravessar a leira da esquerda, parecendo querer cortar-lhe o passo na extrema do caminho que entestava com a aldeia.  O padre agachou-se, coseu-se com o valo das urzes e giestas que formavam o tapume das terras cultivadas, e muito derreado, arquejando com o dedo no gatilho, e a fecharia rente da barba, caminhou paralelo com o lobo que o farejava de focinho  anelante e as orelhas fitas; e assim que a fera passou de perfil em frente ao tapigo, o rei da criação, que o era pelo direito do bacamarte, despediu-lhe a primeira bala com a destra pontaria de quem havia já matado águias com zagalotes. O lobo, varado pela espádua até o coração, decaiu sobre um dos quadris, escabujou em roncos frementes, espargindo flocos de neve, ergueu-se ainda interiçado numa grande agonia, e morreu. 
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BREVE BIOGRAFIA 
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco, nasceu a 16 de Março de 1825 em Portugal. Foi escritor, romancista, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta tradutor. Foi o primeiro Visconde de Correia Botelho. Sua obras principais foram Amor e Perdição e a Morgada de Romaris. Em Portugal foi filmado sua obra Mistérios de Lisboa. Faleceu em 01 de Julho de 1890. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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