Total de visualizações de página

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

AS PUPILAS DO SR. REITOR - Por Júlio Diniz


AS PUPILAS DO SR. REITOR
Por Júlio Diniz
                  José das Dornas era um lavrador abastado, viúvo e com dois filhos. Possuía boas e um gênio afável e jovial. Gozava de geral consideração e simpatia na sua aldeia. 
                   Dos seus dois filhos Pedro e Daniel, o primeiro era o retrato do pai; robusto, feito para trabalhos do campo, simples e são de corpo e alma; o segundo, mais novo que ele uns sete anos, apresentava uma compleição débil e pela delicadeza das feições, tom de pele e fraqueza de gênio, mais parecia uma rapariga. 
                   Vendo o pai que Daniel, pela sua constituição e saúde, não poderia, sem perigo, dedicar-se como o irmão aos rudes trabalhos do campo, resolveu-se, depois de se aconselhar com o reitor, a fazer dele um padre. 
                    Para esse efeito, ofereceu-se o reitor a dar-lhe lições de latim. 
                    Tinha o rapaz treze anos apenas, mas mostrara grande facilidade e inteligência para os estudos e andavam portanto José Dornas e o reitor muito satisfeitos, quando este último fez uma descoberta que o convenceu de que Daniel não tinha vocação para o sacerdócio. 
                    Foi o caso que, desconfiado de que o rapaz levava muito tempo no caminho de sua casa para a casa do pai no fim das lições, uma tarde o seguiu e foi dar com ele na companhia de uma pequena guardadora de gado chamada Margarida. Escondeu-se o bom cura e viu e ouviu tudo que se passava. Daniel dava lições de leitura à sua amiga, cantavam e conversavam, fazia projetos de casarem um dia. O reitor ouviu Daniel assegurar à sua amiga que nunca seria padre e que bem enganados andavam o pai e o seu mestre cuidando que ele seguiria tal carreira. 
                  O resultado desta descoberta  do reitor foi a resolução do José das Dornas de mandar o filho para a cidade do porto estudar, desistindo de o fazer padre, e dando-lhe qualquer outra carreira à escolha. 
                  Margarida, a pequena guardadora de gado, ficou desolada com a partida do seu único amigo. 
                  Perdera a mãe muito cedo e o pai casara pela segunda vez e dessas núpcias tivera uma outra  filha, Clara. A mãe de Clara tratava mal a pobre Margarida, fazendo-lhe sentir a sua triste posição naquela casa que não era sua. Efetivamente o pai de margarida era pobre e a sua segunda mulher, rica. Casa, campos, gado, tudo lhe pertencia. Margarida regava com lágrimas o pão que comia. 
                   Assim foi a pobre criança crescendo, cheia de trabalhos e amarguras, que aumentaram com a morte do pai, tendo porém a consolação da grande amizade de Clara que era para ela a melhor das irmãs e a mais afetuosa das amigas, o que Margarida sabia bem reconhecer, como veremos. 
                   Morreu por fim a madrasta de Margarida e à hora da morte arrependeu-se das suas injustiças e crueldades e pediu perdão à enteada. Era porém tarde; Margarida devia ressentir-se toda a vida da sua triste infância. O seu gênio tornara-se melancólico; era calada e pensativa, mas tinha coração de ouro e um juízo e prudência muito superiores á sua idade. Clara, pelo contrario, era uma bela flor do campo, forte, sadia e exuberante de alegria. 
                  Combinaram as duas irmãs que, enquanto Clara se ocupava dos trabalhos das terras empregando assim a sua força e saúde, Margarida dirigia os trabalhos de casa e, não querendo estar às sopas da irmã, organizou uma pequena aula de crianças a quem ensinava. 
                   As duas raparigas tinham como tutor o reitor, que mutoas estimava, tendo lhes ensinado o que sabia e, mais tarde, um velho filósofo que, arruinado, viera da cidade procurar o sossego da sua terra natal p-ara morrer, continuara e desenvolvera as lições do bom padre. Essas lições tinham encontrado excelente terreno, sobretudo na pensativa Margarida que gostava de ler e cujo espírito assim se elevara e se aperfeiçoara. 
                   Estavam as coisa neste ponto, quando Pedro, o filho mais velho de José das Dornas, começou a afeiçoar-se a Clara, o que encheu de júbilo o velho lavrador ao ver,  não só que o filho viria a casar com uma excelente e linda rapariga, como os seus bens assim cresceriam, pois, como já dissemos, Clara tinha bastante de seu. 
                   Entretanto chegou Daniel à aldeia com seu curso terminado. Tornara-se um lindo rapaz, esbelto, de feições delicadas e no seu vestir e maneiras um verdadeiro senhor da cidade. 
                   A sua chegada fez grande impressão na aldeia. Todos queriam ver o "doutor novo", como lhe chamavam. Ente as pessoas que afluíram à casa do José das Dornas a cumprimentar-lhe o filho, encontrava-se o velho médico da terra, o bom João Semana, tipo que o autor tão bem descreve que o seu nome ficou para sempre em Portugal, usando quando se quer designar um perfeito médico de aldeia. 
                  Este João Semana, apesar dos seus oitenta anos, percorria todos os dias aquelas freguesias a cavalo, visitando os seus doentes a quem acudia, não só com socorros clínicos, como com os socorros pecuniários que os seus meios lhe permitiam. 
                  Pouco ou nada versado nos progressos da ciência médica, conservava o seu receituário antigo com o qual, dizia, se dava muito bem. Em resposta a Daniel, que lhe recitava um autor em voga, ou uma descoberta notável ou um medicamento novo, João Semana encolheu os ombros com ceticismo: 
                  - "Tudo isso é muito bonito", disse ele, "mas não serve para nada. Eu penso que lá por fora nessas terras grandes, há fábrica de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também; cá à aldeia não chegam. Você para cá virá. Há de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco; mais gástricas e menos gástricas e disse". 
                   O bom João Semana mostrava-se rabugento com os seus doentes, berrava, acabava por lhes valer sempre e, com os seus conselhos e esmolas escondidas, sempre lhes acudia. 
                   Tinha o velho doutor o costume de contar muitas anedotas, quase sempre a respeito de frades, e assim a cada passo interrompia o que estava dizendo para vir com a sua história. Ora, estava toda aquela aldeia acostumada ao velho João Semana, aos seus modos  bruscos, à sua bondade paternal, à sua pureza de costumes; e Daniel, com seus vinte anos e pouco juízo, só acarretou censura e desconfianças. 
                    Em casa do merceeiro foi para tratar de doença, começou logo a fazer versos à filha do tendeiro, e toda a família, contentíssima, julgou que ele casaria com a moça. Mas quando viram que aquilo não passava de brincadeira, ficaram furiosos e principiaram a falar mal do Daniel que assim criou na aldeia má fama, que por seus disparates e loucuras se foi agravando. Era tal a sua inconsequência e falta de juízo, que, achando bonita o moça por quem seu irmão se afeiçoara, a Clara, não hesitou em lhe mostrar a sua admiração. A rapariga, por seu lado, achava-lhe graça e ia levando, com o seu gênio alegre e descuidado, aquelas atenções de Daniel de brincadeira. 
                  Daniel não era mau, mas sim muito novo e costumado àquela vida de estudante, muito descuidada e imprudente. Incapaz de uma má ação, não tinha, no entanto, força para contrariar os seus gostos e assim se deixava ir, sem pensar, a fazer coisas que a sua consciência de homem de bem, reprovava. 
                  Margarida nunca esquecera aquele tempo da sua infância em que Daniel, um garoto de treze anos, lhe ensinara a ler, cantava e conversava horas com ela, e lhe prometia casamento para quando fossem ambos crescidos. Daniel fora a sua única alegria naquela época tão triste da vida da pobre rapariga e ela guardava-lhe no fundo do seu belo coração tão fiel, um grande reconhecimento e uma grande ternura. Mas, como era orgulhosa e não queria que Daniel nem pessoa alguma pudesse pensar que ela, pobre e humilde, aspirava a tal casamento, a ninguém dizia, nem a Clara, o que tinha no pensamento e tratava de evitar encontrar-se com Daniel; de modo que este, completamente esquecido da sua afeição de criança, mal sabia da existência de Margarida. 
                   A pobre margarida andava muito preocupada com o que se passava entre a irma e Daniel. Não eram ciúmes o que ela sentia; na sua alma grande demais não havia lugar para sentimentos que não fosse grandes e nobres. Afligia-a a imprudência e leviandade da irmã. 
                   Daniel passava todas as tardes a cavalo pela casa das pupilas do senhor reitor e demorava-se a conversar com Clara, que o esperava à janela. É certo que Margarida, costurando pela banda de dentro da janela, junto de Clara, assistia a conversa; masa Daniel não a via e ignorava a sua presença. 
                  Por fim, muito instada pela irmã que lhe apontava os perigos e a aconselhava a ser prudente e a ter juízo, Clara resolveu-se a acabar com tal intimidade e proibiu Daniel de continuar com as suas conversas. 
                  Porém Daniel, que achava graça àquela brincadeira que, na sua leviandade, lhe parecia inocente., não desistiu de bom grado e perseguia Clara procurando falar-lhe. Por fim conseguiu que ela lhe prometesse uma entrevista, de noite, no jardim, para poder explicar-lhe tudo à vontade e ela não ficar fazendo dele uma má ideia.
                   Ora, aconteceu que nessa mesma noite Pedro, o filho mais velho de José das Dornas e noivo de Clara, saiu de casa para poder chegar de madrugada a um campo das suas propriedades, onde queria vigiar uns certos trabalhos que lá fazia. 
                    Ao passar pela casa das duas irmãs, deteve-se um pouco ; quem sabe se Clara estaria acordada?  Pôs-se a cantar em voz alta, mas logo se interrompeu parecendo-lhe ouvir certo ruído por detrás do muro do jardim. 
                    Bateu ao portão perguntando quem estava ali. Mas, como ninguém lhe respondesse, mudou de plano e afastou-se cantando. Depois, voltou para traz cautelosamente e calado e, pondo-se à escuta à porta do jardim, ouviu vozes de duas pessoas que conversavam animadamente. Deu-lhe um salto o coração; passou-lhe pelo pensamento a ideia horrível de que Clara estaria falando a outro homem. 
                    As vozes aproximavam-se da porta. Pedro, sem saber o que fazia e com a cabeça perdida, pôs o dedo no gatilho da espingarda que levava consigo. 
                    A porta abriu-se e apareceram no limiar dous vultos, um de homem e outro de mulher. 
                     - Alto, miserável! Pára ou estás morto!, bradou Pedro. 
                     O homem estacou. Dentro do jardim ouviu-se um grito de mulher e a porta, empurrada com força, vei fechar-se com estrondo. 
                     Pedro avançou para o homem. 
                     - Quem és? Quero conhecer-te antes de te matar!. 
                     E lançando mão ao desconhecido, desembuchou-o; o luar bateu de chapa na cara de Daniel. 
                     Não há palavras que possam explicar o que se passou então na alma do pobre Pedro. 
                     - Daniel!, exclamou ele assombrado. 
                    E ficaram os dois algum tempo calados um defronte do outro. 
                    Daniel, abatido, parecia fulminado. Que desespero e que arrependimento e como ele maldizia agora a sua leviandade. 
                    - Pela alma da nossa mãe, Daniel, disse Pedro por fim, sai daqui se não queres que suceda alguma desgraça! 
                   Daniel ainda queria falar, explicar ao irmão o que se passara, mas o outro gritou-lhe de novo que fugisse; e nisto a mão de um homem pousou no ombro de Daniel. Era o reitor que por acaso ali passava e ouvira e vira o que sucedera. 
                   - Retire-se!, exclamou ele severamente. Eu tinha previsto esta desgraça!
                   Pedro afastara-se. Dirigindo-se para a porta do jardim, tentava arromba-la às coronhadas. 
                   Mal o padre se aproximava, cedeu a porta e Pedro, meio doido, precipitou-se para dentro do jardim. Esbarrou numa mulher que lhe caiu aos pés bradando:    
                   - Pedro, Pedro! Não me queira perder!
                   Era Margarida!
                   Pedro não caia em si de espanto. Era então Margarida e não Clara, que se encontrava no jardim com Daniel! Que alívio sentiu o coração de Pedro! 
                   Quando o reitor chegou, encontrou-os nesta posição. Caminhou com o rosto severo para a mulher, mas recuou também espantado, ao reconhecer Margarida. 
                   De repente o bom homem adivinhou tudo: Margarida, a irmã sublime, a santa rapariga, acabava de se sacrificar para salvar a irmã. 
                   O reitor fingiu acreditar e voltando-se para Pedro, disse-lhe. 
                   - E que mais tens que ver aqui homem? 
                   - Tenho que pedir perdão a todos. 
                   O reitor empurrou-o brandamente para fora, dizendo: 
                   - Vai, vai. Deixa isso para outra vez. 
                   Nisto, como a madrugada rompia ia-se juntando gente, curiosos que o ruído tinha ali chamado. O reitor voltou-se para eles todo zangado. 
                   - E vocês, que fazem ai pasmados? Andar! e ter cautela com a língua. Ouviram? 
                   Os curiosos dispersaram-se, mas a recomendação do bom reitor de nada lhes aproveitou, pois ainda antes do meio dia, já toda a aldeia estava fervendo em notícias disparatadas. Uns diziam que Pedro encontrara o irmão conversando com Clara e que ferira Daniel com um tiro de espingarda; outros asseguravam que se tratava de margarida e não faltava quem pusesse à rasa a santa rapariga; havia quem afirmasse que Pedro matara o irmão, quem tivesse ouvido o tiro e visto o sangue na rua. Assim a fantasia e maldade iam bordando a história e o resultado de tudo isto foi o descrédito de Margarida. As mães já não deixavam as suas filhas frequentarem a aula da pobre rapariga que aceitava tudo com uma resignação infinita, contente no fundo do coração por ter salvo a sua querida Clara. 
                   Mas o reitor é que não entendia as coisas assim. Obrigou a sua pupila preferida a atravessar a aldeia pelo seu braço. Ao chegarem ao largo, muitas discípulas de Margarida que ali andavam brincando, correram para a abraçar; mas as mães sentada pelas portas não as deixaram, chamando-as para junto de si. 
                   Então o reitor, voltando-se para aquelas mulheres, exprobou-lhes a conduta com severidade e para dar o exemplo, mostrar a todos o alto conceito em que tinha a pupila e significar o respeito que ela merecia à sua virtude e seus cabelos brancos, curvou-se diante dela e beijou-lhe a mão, chamando todas as crianças e mandando-as fazer o que ele fizera. 
                   As crianças obedeceram bem alegremente pois adoravam a sua mestra e as mães foram-se chegando a margarida, arrependidas, e abraçaram-na.
                  Nisto chegou José das Dornas que tendo visto o que se passara também, diante de todos, beijou a mão de Margarida dizendo-lhe palavras de sentida amizade e respeito. 
                  Então o reitor disse à pupila que fosse fazer uma visita ao seu velho mestre que estava muito mal e, ficando só com o lavrador, principiaram os dois a conversar sobre o caso. 
                   José das Dornas estava todo ralado com aquela nova loucura do Daniel e falava em mandá-lo para o Brasil, mas o reitor convenceu-o que o melhor seria casa-lo com Margarida. O lavrador, que estimava muito a irmã de Clara, mostrou-se favorável àquela ideia. 
                   Entretanto Margarida, entrando em casa do seu velho  mestre, encontrou-o só e agonizante. 
                   Na sua aflição não sabia o que fazer, quando chegou de repente Daniel; mas o pobre homem  já não tinha cura e pouco depois morria.  Então ali, na presença daquele cadáver, Daniel, tomando o céu como testemunho da sua sinceridade, disse a Margarida que gostava dela, que se lembrava agora dos seus tempos de criança e de quando fugia para ir ter com ela e ensinar-lhe a ler e acabou por lhe pedir que o aceitasse por marido. A pobre Margarida que morria por ele havia tanto tempo, não quis porém aceitar aquele oferecimento que repugnava ao seu orgulho. Receava que, da parte de Daniel, aquilo fosse um simples movimento de generosidade, e receava também que a acusassem de aproveitar a ocasião para apanhar um marido rico, ela que nada tinha na terra. 
                   Porém o reitor,  Clara e Daniel tanto insistiram que ela teve que ceder, sobretudo quando Clara ameaçou de contar a verdade toda, se ela teimasse em recusar. Contar a verdade era perder-se, era fazer a sua desgraça, a de Pedro, a d Daniel. Margarida não teve remédio senão ceder. 
                   Estavam todos reunidos em casa das duas raparigas, o reitor, José das Dornas, Pedro e Daniel, quando chegou o bom João Semana esbaforido porque ouvira os boatos mais extraordinários; que houver sangue, que Pedro andara para matar o irmão, que este fugira, e outras coisas assim. 
                   O reitor mandou-o subir para a sala e ai ficou o velho doutor pasmado, sendo José das Dornas, sentado, limpando uma lágrima de satisfação, a uma janela Clara e Pedro conversando, à outra  Daniel e Margarida. 
                   João Semana olhava para tudo aquilo sem entender nada, até que deu com os olhos no reitor que lhe pregou uma risada. 
                   - isto, que quer dizer? perguntou ele afinal. 
                   - Quer dizer,respondeu o reitor, que estás convidado desde já para duas bodas. 
                   Assim termina a linda e comovedora história das pupilas do senhor reitor, das mais populares que se devem à pena do singelo escritor português. 
.
NOTAS EXPLICATIVAS 
Júlio Diniz, na verdade é Gomes Coelho que escrevia sob este pseudônimo.  Ele foi o romancista característico da vida provinciana portuguesa. Ninguém exprimiu melhor o sentimento da paisagem do seu pais, o aspecto insinuante dos seus campos e das suas aldeias. Nas suas expressões pode-se perceber nitidamente sua paixão pela vida interiorana de Portugal. Entre os romances que escreveu, o mais popular, e aquele em que melhor se patenteiam estas qualidades, é o das "Pupilas do Senhor Reitor", aqui resumida de forma pedagógica. 
Nicéas Romeo Zanchett 
.
   



Nenhum comentário:

Postar um comentário